EÇA, A ÁGUA, A TESOURA,
A MOSCA E A ELECTRICIDADE
In, Diário de Lisboa, suplemento A Mosca de
26-12-1970
Coisas boas em jornais
«Certo
dia faltou água em Lisboa e Eça de Queirós escreveu uma carta ao dr. Carlos
Pinto Coelho, então director da Companhia das Águas de Lisboa, propondo que lhe
fosse permitido retribuir o corte que lhe fora feito em termos que «A Mosca»
não pode deixar de aplaudir. Transcrevemos a carta de Eça (gentilmente cedida
pelo dr. António Bacelar Carrelhas) porque julgamos as medidas propostas pelo
grande escritor aplicáveis aos Ex.mos directores das Companhias reunidas de Gás
e Electricidade sempre que falta corrente numa área de Lisboa como tem
acontecido ultimamente.»
IL.mo
e Ex.mo Senhor Carlos Pinto Coelho, digno
director da Companhia das Águas e digno membro do Partido Legitimista:
Dois
factos igualmente graves e igualmente importantes, para mim me levam a dirigir
a V. Ex.ª estas humildes regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as ultimas
vitórias das forças Carlistas sobre as tropas Republicanas em Espanha; o
segundo é a falta de água na minha cosinha e no meu quarto de banho.
Abundaram
os Carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que de
comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Ex.ª, a responsabilidade
da canalização e a do direito divino.
Se
eu tiver a fortuna de exacerbar até às lágrimas à justa comoção de V. Ex.ª, que
eu interponha o meu contador, Ex.mo
Senhor, que eu o interponha nas relações de sensibilidade de V. Ex.ª com o
Mundo externo; e que essas lágrimas benditas de industrial e de politico caiam
na minha banheira.
E,
pago este tributo aos nossos afectos falemos um pouco, se V. Ex.ª o permite,
dos nossos contratos. Em virtude do meu escrito, devidamente firmado por V.
Ex.ª e por mim, temos nós - um para o outro - um certo número de direitos e
encargos. Eu obriguei-me para com V. Ex.ª a pagar o desvio de uma encanação, o
aluguer dum contador e o preço da água que consumisse.
V.
Ex.ª pela sua parte obrigou-se para comigo a fornecer a água do meu consumo.
V.
Ex.ª fornecia, eu pagava. Faltamos, evidentemente à fé deste contrato: eu se
não pagar, V. Ex.ª se não fornecer.
Se
eu não pagar, faz isto: corta-me a encanação. Quando V. Ex.ª não fornece o que
hei-de eu fazer, Ex.mo
Senhor? É evidente que para o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu
preciso, no análogo àquele em que V. Ex.ª me cortaria a mim a canalização, de
cortar alguma coisa a V. Ex.ª.
Oh!
E hei-de cortar-lha!...
Eu
não peço indemnizações pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu
não peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água.
Não
quero pôr a Companhia em dificuldades, não quero causar-lhe desgostos, nem prejuízos...
Quero
apenas esta pequena desafronta, bem simples e bem razoável, perante o direito e
a justiça distribuída: - Quero cortar uma coisa a V. Ex.ª.
Rogo-lhe,
Ex.mo
Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente, sem
evasivas nem tergiversações qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno
direito, eu posso cortar a V. Ex.ª.
Tenho
a honra de ser
De
V. Ex.ª com muita consideração e com umas tesouras
a) EÇA DE QUEIROZ
Recorte do Diário de Lisboa e Eça de Queiroz (1871).
Foto de H.S. Mendelssohn, encontrada em iurisdictio-lexmalacitana.blogspot.pt
"Políticos e fraldas devem ser trocados
de tempos em tempos pelo mesmo motivo"
(Eça de Queiroz)
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