Entrevista de Anabela Mota Ribeiro
Publicada no suplemento do jornal Público de 29-07-2012
Coisas boas em jornais
Quem é Beatriz
da Conceição? Perguntem a Ana Moura e a Carminho. Perguntem a Camané. Perguntem
a quem não gosta dela. Uma referência. Fadista de palavras que cortam como
facas. A tia Bia tem 73 anos, nem amaciados nem derrubados pela vida. A Dona
Bia exige ser tratada com respeito.
Ouvir a sua
história é ouvir um puro grito. Ouvir um tempo e uma condição social. Ouvir uma
cidade e um género. Um capítulo do salazarismo. Uma página do neo-realismo. E a
revolta e o combate contra tudo isso. Beatriz da Conceição é do tempo em que as
mulheres eram desonradas, as crianças davam de frosques da escola e as
raparigas trabalhavam na costura até casar. (Quando foi pela primeira vez à
televisão, empenhou-se e comprou a prestações um tecido de seda. “Fiz o vestido
numa modista.”) Fala como quem sangra. Tudo nela é autêntico e singular. Tem
qualquer coisa de personagem maldito. Escreveram-lhe estes versos: “Chamaram-me
ovelha negra, por não aceitar a regra de ser coisa em vez de ser.”
Um noite, por
acaso, a vida mudou. Cantou uns fados. Achava que o que sabia dos fados era de
ouvir. O que ela não sabia é que o que sabia dos fados era de viver. A Dona
Márcia Condessa disse-lhe: “A menina não vai nada para o Porto, vai ser uma
grande fadista”. Lucília do Carmo assinou por baixo. “Ó menina, você canta à
sua maneira e muito bem. Assim é que é bonito”.
Fez-se
fadista.
Encontrámo-nos
no Museu do Fado, em Lisboa. É tratada com uma deferência que a conforta. Do
outro lado da rua, no largo que dá para Alfama, fazem-lhe uma festa. Um viola
que vai para a Parreirinha, um fadista que é uma jóia e que se livrou da droga.
Gente dali. Gente do fado que presta homenagem à Dona Beatriz da Conceição. À
Tia Bia.
(Advertência:
ela continua a falar como a rapariga do Porto que sempre foi. Isto é:
preparem-se.)
Então benzeu-se… Porquê?
Porque sou uma rapariga crente. E para não dizer disparates. Asneiradas. Às
vezes sai-me.
É do Porto, onde se dizem
muitas asneiradas.
Cá também se dizem. E de que maneira. Mas as do Porto não magoam tanto como
as de cá. Por exemplo, no Porto dizer: “Esta filha da puta está a irritar-me”
não tem maldade. Diz-se sem ofender ninguém. É como dizer: “Vai à merda, não me
chates”. Em Lisboa, não. Foi o que senti quando cheguei cá. No Porto, até as
madames ricas da Foz dizem: [com voz afectada] “Ah, o menino vá para o caralho,
não me chateie”.
Nunca ouvi uma madame rica
dizer isso. Mas está bem.
Conheci uma data delas que diziam. Uma – não vou dizer os nomes – dizia do
marido: “Este cabrão, ahhhh, o que me chateia este cabrão”. Mais tarde
conheci-o. Monárquico. Era uma gente que gostava muito de mim.
Como é que os conheceu?
Iam aos fados.
Vamos começar pelo princípio,
pelo Porto, onde nasceu em 1939. Beatriz da Conceição. Nome da Beatriz Costa.
Tem que ver com isso?
Não. Que disparate.
Podia ser.
Porquê? Ela gostava mais de mim por causa disso. “Cabrona!, ainda por cima
és Beatriz da Conceição”. Pensaria que não havia outra Beatriz da Conceição.
Ela não pôs. Pôs Beatriz Costa. Mas eu sou do Porto e ela da Malveira.
Não é um nome vulgar, apesar da
Beatriz Costa. Porque é que lhe puseram Beatriz da Conceição?
Ah minha querida, a minha madrinha já morreu.
Está a falar do tempo em que se
punha às crianças o nome dos padrinhos.
Por acaso a minha madrinha não se chamava Beatriz da Conceição. Tenho uma
irmã Maria da Conceição. A minha mãe chamava-se Joaquina. Nome que detesto. A
minha mãe morreu era eu muito pequenina. Oito anos. Ainda hoje vejo a minha mãe
na cama a morrer. [põe a mão nos olhos, testa franzida] “Tiz, Tiz, Tiz”.
Chamava-me Tiz. Isto bateu-me mal muitos anos. Verdade. É uma história um
bocado complicada.
Quer contar?
Posso contar. A minha mãe morreu com 29 anos. Está a ver. Era uma rapariga.
Existia eu e um irmão mais novo. Também já está lá [levanta os olhos para o
céu]. O meu pai era muito malandreco. Tinha a mania que era galã. Por acaso até
era. Para a minha mãe foi muito bera. Arranjava amantes. O que é que lhe deu
naquela corneta? Tínhamos uns vizinhos. A senhora tinha uma filha, que nem era
do marido, e que estava num colégio de freiras. Quando fez 17 anos, saiu das
freiras e foi para a mãe. O meu pai deitou-lhe a gadanha.
Gadanha?
Nem sei o que quer dizer gadanha.
É um instrumento agrícola. Mas
é também o que traz a morte quando vem ceifar vidas.
Não sabia. A gente no Porto dizia [com tom guloso]: “Deitei-lhe a gadanha...”.
Aquilo deu-se muito mal. A outra queria que o meu pai se casasse com a
rapariga, não é? Foi para tribunal dizer que ele a desonrou. Essas tretas. Foi
aí que a minha mãe se começou a enervar. Por causa do divórcio. Depois de isto
começar, durou pouco tempo. Quando lhe rezo, estou a vê-la. Era muito bonita, a
minha mãe. Deitada na cama. Deixou de falar. Só dizia: “Meus Deus” e o meu
nome. Como quem: “Que vai ser feito de ti?”.
O que é que faziam os seus pais?
O meu pai era vendedor de sapatos. [Caixeiro-viajante]. A minha mãe, fartou-se
de trabalhar, como uma moura. Trabalhou numa fábrica. Um viola que está aqui na
Parreirinha [de Alfama], o Zé, andou comigo ao colo. “Esta cabrona já me fez
xixi nas calças”, dizia para a Dona Argentina [Santos, fadista, dona da
Parreirinha]. “A mãe da Tiz andou numa fábrica de botões, e a minha irmã
trabalhava com ela”. Ele também era um rapaz. A minha mãe deixava-me no berço,
‘tadinha, enquanto trabalhava. Pirava-se do trabalho ou pedia ao patrão e ia lá
dar-me o leitinho.
Onde é que moravam?
Na Rua do Alto da Fontinha. Está a ver a Rua Santa Catarina? Há ali uma
transversal do lado direito, a Rua da Escola Normal. (Foi uma das minhas
escolas. Fui de frosques das outras duas por ser refilona. Pá, quando se
pegavam à porrada, havia uma desgraçada que levava de todas. Passava-me e ia eu
para a tourada também.) Em frente a essa escola normal, fica a Rua da Fontinha.
A minha, era se subisse por ali acima. Era uma ilha. Como é que aqui chamam às
ilhas?
Vila.
Ainda sei a morada: 93, casa 18. Nunca mais me esquece. Sempre gostei do
18. Já morei em duas casas 18.
Acha que a sua mãe se matou?
[algo ríspida] Não! Não. Não foi do coração. Nem sei bem o que é que foi
aquilo. Dos nervos. O meu irmão
ficou muito doente. Foi para a casa de uns vizinhos. Eu fiquei a dormir uma data
de dias na casa de um casal de lá da rua. Quando me lembro disto... Eu tenho
estas insónias desde garota. O casal só tinha uma cama, não é? Dormia na cama
com esse casal, nos pés. Levava com as pantufas deles nos cornos. Comecei a bater
mal aí. Depois fui para casa de uma tia. Uma casa do tamanho da da Branca de
Neve e dos Sete Anões. Tinha duas filhas e o marido tinha-se pirado para
África. Eu gostava de estar com a minha tia, mas ela também me punha a
trabalhar p’ra caraças.
A fazer o trabalho doméstico?
A minha tia tinha a mania da limpeza. Era histérica. Lembra-se daquelas
máquinas a petróleo, amarelas? Tinha de limpar todos os dias. O chão era em
pedra. Arrggg, passar o chão outra vez. Era tudo gente pobre. Tinha um larguinho
cá fora onde estava o tanque da roupa. A minha tia também me punha muito a
lavar a roupa. E eu começava a cantar. As vizinhas vinham para a janela. “Ó
Alice”. Era a minha tia. “Ai a tua sobrinha canta tão bem.”
O que é que cantava?
Fados da Amália. E do Max.
“Pomba branca, pomba branca”.
Quem diria que anos mais tarde gravaria essa música.
É verdade. O meu pai gostava muito do Max. O meu pai não sabia ler muito
bem. Tirou a quarta classe quase com 40 anos. Mas eu sabia ler. Deitado na cama:
“Anda lá, ensina-me, que eu dou-te cinco paus”. [Canta] “Na pequena capelinha,
da aldeia velha e branquinha”. Cinco paus! Curiosamente o meu pai era muito
parecido com o Max. O Max conheceu o meu pai no casamento da minha irmã no
Porto. Olhou para o meu pai: “Ó pá, somos irmãos?” O casamento da minha irmã
foi numa casa de fados. Foi o [António] Calvário. O meu pai tinha paixão por
ouvir aquele senhor [Max].
Da Amália cantava marchas. Não cantava aqueles fados tristes. Eu na altura
nem era assim muito triste.
Ia à escola?
Ia. Fiz a quarta classe. O que se segue: estou na minha tia uns anos. A
minha madrasta, toda contente. Mas o senhor meu pai disse: “Não posso estar sem
os meus filhos”. Foi-me buscar. Entretanto tinha arranjado um namorado. Era
mais velho do que eu onze anos. Eu tinha 17. A família: era tudo gente dali.
Gostavam muito de mim. “Tadinha da Tiz, a mãe morreu tão cedo”. Essas merdas.
Coisa fantástica: fiquei grávida.
Foi ele que a desonrou?
Foi. Aos 18, fui logo mãe. A minha filha nasceu a 11 de Agosto, eu sou de
21. Disse-lhe a ele. “Eu não sei o que é isso de ter um filho”. A minha tia:
“Vais fazer um aborto”. E eu: “O que é um aborto?”. Eu era assim muito chouriça
na brincadeira mas nessas coisas era muito inocente.
Nunca tinha tido conversas com
ninguém sobre sexo?
Não. Nada. Um beijinho quando andávamos lá no bailarico, e pronto. A minha
tia com medo que o meu pai me desse uma grande tareia, ou ela, a minha
madrasta. À noite, quando estavam a dormir, a roncar, fugi. Isto parece um
filme.
Ele tinha modo de vida, como se
dizia na altura?
Tinha. Duas mercearias. A família toda de Vila Real. Tinham dinheiro.
Tem um fado que diz: “Deste-me
um beijo e vivi”. Foi o que sentiu quando o encontrou?
Não. Eu gostava muito dele, mas ele também era um grande malandro. Desculpa
lá, ó António.
Casaram?
Não.
Estar amancebado era
problemático?
Pois, mas eu estava-me cagando para isso. A casa era em Gaia, longíssimo. Quase
ao pé da televisão [RTP]. Prédios novos. A minha sogra não fazia népia em casa.
Cozinhava mesmo à moda de lá de cima. Também aprendi muito com ela. Mas não
gostava de arrumar. Comiam e deixavam a mesa toda. “Mas que é isto, sou alguma
escrava?”.
Eu, com uma grande barriga, ela tinha a mania de abrir a porta do meu
quarto: “Menina, pino!”. Pino é: salta da cama. E eu a dormir tão bem... Tenho
insónias desde essa altura.
Trabalhava?
Trabalhava na costura. Depois, deixei. Fui com 13, 14, 15. Gostava muito de
costura.
Percebe-se que tem gosto em
arranjar-se. Ainda faz coisas para si?
Sei o que quero e sei o que compro e não preciso de estilistas. Há 30 anos,
eu ia muito à televisão. Muita gente dizia: “Calada, que vai cantar a Beatriz”.
E só olhavam para os meus vestidos. Pá, é assim: eu já tinha ido muitas vezes a
Paris e a Londres.
Como é que tinha ido a Paris e
a Londres?
Cantar, porra. Isto foi nos anos 70. Corria aquelas montras, armazéns. Nem
era caro. Por 20 contos comprava vestidos lindíssimos, boas malhas e tudo.
Tinha uma amiga que bordava. Começava logo a pensar: “Aquela gaja vai-me bordar
aqui umas coisas”.
Era uma rapariga muito bonita?
Sim. Muito, muito... Era normal.
Sempre contou com a sua beleza?
Tem um ar altivo.
Não era de propósito. Era assim. Tenho de ter medo porquê? Ia ouvir a
Lucília do Carmo, que era a minha musa. Chorava que me fartava. Ia ouvir a
Fernanda Maria. “Vou mas é fazer as malas e vou para o Porto”. Até elas me
dizerem: “Ó menina, você canta à sua maneira e muito bem. Assim é que é
bonito”. Estas gajas, agora, imitam todas. Umas imitam-me a mim.
Quem é que a imita?
[sorriso] Oh, é chato, porque elas gostam todas muito de mim. Outras imitam
a Amália. A Mariza foi beber a alguém. Agora está menos. Eu, não. Criei um
estilo meu. Podia gostar da letra que outra fadista cantava. Enquanto estivesse
a cantar com ela [na mesma casa de fados], não cantava. Quando mudava para
outra casa de fados, cantava. Sei que não cantava igual a ela. Foi um condão
que Deus me deu. Toda a gente diz: “A Beatriz tem personalidade a cantar”. E
podia ter imitado muita gente.
Por isso importa conhecer a sua
história. É ela que lhe dá essa personalidade a cantar. Não é?
Pois. Eu a cantar sou muito emotiva. Até demais.
É uma emotividade contida, ao
mesmo tempo. Os movimentos da sua boca, quando está a cantar, comprovam-no.
Nunca é histriónica. É feroz.
Sou. Feroz com as palavras que digo.
Palavras ditas como se fossem
facas.
Às vezes é qualquer poema que tem qualquer coisa que me magoa. Digo aquilo,
mas não grito. Nunca gritei a cantar. E tenho raiva a quem grita. Mas pronto.
Não sabia que tinha uma filha.
Tenho dito em muitas entrevistas. Mas agora não quero dizer. Estamos numa
muito má. Péssima. Ela odeia-me. Eu não a odeio. “Abandonaste-me...”. Diz isso
para me machucar. “Não te abandonei. Ficaste com o teu pai. Que era rico e te
pôs num colégio”. Fez mal foi em pô-la num colégio de freiras. Eu ainda tinha
aquela revolta de o meu pai ter desonrado a rapariga do colégio de freiras. “As
freiras são todas uma putas. E as meninas dos colégios de freiras, outras
putas”. Isso era para a ferir a ela.
Deixou o pai da sua filha
porque estava farta dele?, porque queria viver a sua vida?
Estava farta dele! Tinha 20 para 21 anos. Ele chegava todas as noites às
três, quatro da manhã. E arranjava mulas. Notava pelo cheiro dele. Andava
sempre a espiolhar as camisas. Uma vez cacei batom numa. Dei-lhe com aquilo com
os cornos. Ia-me a ele. Engraçado, não me batia.
Não estou a ver um homem a
bater-lhe.
Sim, é difícil. Eu lia muito. Romances de amor. Adorava. Pá, não me dava
para ler coisas intelectuais.
([O fotografo chega com um café.] Ena pá. Então não trouxe para a menina?
[Para o fotógrafo] Vou ficar tua fã pela tua simpatia. Julguei que já tinha
dado de frosques, já nem me lembrava dele.)
Estava a dizer que lia romances
de amor.
Era devoradora. Tinha uma amiga, rapariga estudada e letrada. “Lê este, que
é bom”. Chorava como uma Madalena. Misturava a minha situação com certas romances.
Também havia madrastas. Ou sogras. Levei com esses nomes.
Um dia disse-lhe: “Vou-te deixar”. Ele dava-me tudo o que eu precisava.
Era ciumento? Estamos a falar
de fado e ainda não falámos de ciúme. Como é possível?
Sei lá se ele era ciumento. Não me levava a lado nenhum. Estava ali fechada
em Vila Nova de Gaia. Um desterro. Ele gostava de mim, sei que gostava. Faltava
ele portar-se bem.
Não andar com mulas.
Um dia, uma gaja que eu conhecia da costura, e que morava na Rua Escura (a
rua das putas lá no Porto), viu-me na Baixa. “Ai mulher, esse gajo tem aqui na
Rua Escura uma prostituta”. O quê?! “Chama-se Mariazinha. Até a tirou da rua”.
Já não fiquei bem da cabeça. Quando chegou a casa: “Onde é que estiveste?”. Meu
este, meu aquele – aqueles nomes bonitos. Antes que ele me deixasse, deixei-o
eu a ele. “Ficas a falar com o senhor Daniel”.
Quem era o senhor Daniel?
Estes calões que se dizem. Em vez de dizer: “Ficas a falar com o caralho”,
“Ficas a falar com o senhor Daniel”. Digo muito isso a algumas fadistas que me
estão a chatear: “Ficas já a falar com o Daniel”.
Fui ver se era verdade. Já agora. Saio no autocarro, desço umas escadinhas,
Rua Escura. Tum, tum, tum. Veio uma remelada à porta. Juro por Deus. Uma
rapariga para aí com quarentas.
Isso é que foi humilhante? Tê-la
trocado por uma mulher mais velha?
Pois foi. Se ela fosse uma Sofia Loren. Muito pequenina. Não me esquece a
cara dela. Mandou-me entrar. Qual não é o meu espanto quando olho para cima de
um móvel e vejo uma fotografia dele. Quando cheguei a casa, rasguei-lhe a roupa
toda.
Isso é que foi humilhante? Tê-la
trocado por uma mulher mais velha?
Pois foi. Se ela fosse uma Sofia Loren. Muito pequenina. Não me esquece a
cara dela. Mandou-me entrar. Qual não é o meu espanto quando olho para cima de
um móvel e vejo uma fotografia dele. Quando cheguei a casa, rasguei-lhe a roupa
toda.
Isso parece uma letra de um
fado.
Não tenho letras assim.
Coisas excessivas. No fado “A
vida que eu sofro em ti” diz assim: “Por cantar este meu fado, que é teu corpo
decepado, dentro do meu coração”. O corpo decepado? Lembrou-me a propósito da
roupa rasgada.
Pois. Deixei a minha filha com o pai e os avôs ela não tinha dois anos. Era
muito bonita quando era pequenina.
Essa é a grande dor da sua
vida?
Já foi. Agora não. A minha filha é muito má para mim.
Há quantos anos não fala com
ela?
Há uns três. Às vezes falamos e ela começa logo a desconversar. Ela está
metida nessa merda do Reino de Deus. E como sabe que jogo, [atira]: “Vais pôr o
dinheiro no casino, nos chineses!”. “Queres que morra para herdares? Vais
herdar merda!”.
Ricas conversas. Quando é que
começou a jogar?
Tinha 25. Ia cantar ao Casino do Estoril e não jogava. Os croupiers: “Não joga, menina?”. Eu via a
Simone entrar. A de Oliveira.
Parênteses: a Simone era uma
rival?
De mim? Não! Puxa. Era [rival] da Celeste Rodrigues. “Vou jogar um
bocadinho, filha”. O Varela [Silva] também jogava. Foi só no Algarve que me
comecei a viciar. O raio de uma espanhola tinha um namorado que era croupier. “Eu pago o cartão”. Os músicos
meus amigos diziam: “Não entres, Bia, que se entras nisto ficas marada como a
gente”. Havia um homem dono de uma coisa de conservas que gostava muito de mim.
“Dou-lhe dinheiro para jogar”. “Queres ver este velho que se está a amandar a
mim?” E estava. Havia assim muitas xaropadas.
Tinha de apanhar com umas
xaropadas?
Ah pois tinha. E eu que nunca gostei que ninguém me escolhesse. Oh pá,
nunca gostei. Gostei de ser eu a escolher.
Quando é que se apaixonou?
Quando é que teve de lutar por um homem?
Lutar, não lutei nada. Eu parece que tinha mel. Eles vinham.
Porquê? Porque tinha um ar
fogoso?
Não. Eu não era atrevida nem nada. Apaixonei-me muito, e viveu comigo
muitos anos, o Fernando. Nem sei se está vivo, mas acho que sim. Também era um
malandreco. É a minha sina. Malandrecos com mulheres. Uma vez dei-lhe umas
grandes mocadas com tachos – juro por Deus –, fechei-o à chave em casa e fui-me
embora. Desapareci três dias. Um amigo meu disse-me: “Coitadinho do Fernando.
Se calhar não tem nada para comer”. “Deixa-o estar.” “Pode estar morto.” “Não
quero saber.” Quando abri a porta até fiquei com medo que ele se amandasse como
um leão. Nem tinha cigarros nem nada, estava enlouquecido.
Jogar foi um dos problemas da
sua vida?
Foi. Foi mesmo.
Como outros têm a droga?
Quase. Já me passou.
Quando é que deixou de jogar?
[Há] dois anos. Mas foram 30 e tal anos a pôr lá o dinheiro.
Roleta?
Banca francesa. Dados. Nunca tive assim um vício. Tenho outro: fumar. Mas
nunca fumei outra coisa. [riso] É o cabrão do SG. No casino a jogar, não me
lembrava de nada.
O que era aquilo para si?
Era um mundo. A minha cabeça não estava ali. Não pensava nisto nem naquilo.
Ia lá cantar e eles pagavam-me assim: “Bia, queres em cheque ou em fichas?” “Ah
cabrão, que já me deste azar.” Deixava lá o dinheiro, 200 contos.
Dívidas sérias, teve?
Hum. Dívidas, não tive. Vendi foi as jóias todas.
Jóias que recebia dos
apaixonados?
E que tinha comprado. Umas de um apaixonado, que era de Alfama. Comprava
muitas jóias quando estava no teatro. A gente comprava a uma senhora que era do
Porto, a Aidinha. A Florbela também comprava.
Qual Florbela?
A Queirós. “Biazinha, tenho aqui um anel”.
Esse anel que traz é bem giro.
Este? Tem anos. E este [mostra] também é um anel, não é uma aliança. É um
anel com um brilhantezinho. Sempre gostei de anéis grandes.
Que é que representavam?
Não sei. Em Londres é que apanhei essa tara. Via lá. Comprava em bom. Não
era de plástico. Gostava de ouro, brilhantes e safiras. E tive muitos. Lindos,
lindos.
Ganhou muito dinheiro?
Ganhei. Mas estourei-o. Esse senhor com quem vivi e que era de Alfama, o
Vítor, era joalheiro. Foi agora no fim da minha vida. Vivemos onze anos. Também
um dia chateei-me. A casa era minha. “Faz as malas e vai-te embora.” Era
amoroso para mim. Um bocado nariz empinado. “Vi uns sapatos, uma camisola...”
Dava-me tudo. Vínhamos muito à Parreirinha. Ele gostava de ir ao Mónaco jantar
e dançar um bocadinho. Também não havia muitos sítios para dançar, não é?
Como é que conseguiu
libertar-se do vício?
Do casino? Não sei. Não tenho explicação. Tanto que pedia a Deus que me
tirasse aquele vício. No jogo não pensava em nada. Não estava doente, não me
doía a cabeça. Não tinha fome, não tinha insónias.
Durante anos bebeu bastante.
Também bebia.
Nunca foi um problema?
Não! Bebia com peso e medida.
Ambiente boémio. Bebia-se a
noite toda.
Sim. O meu champanhezinho. O meu Baileys. Descobri o Baileys ainda em
Londres. Bebi garrafas daquilo. Depois enjoou-me tanto que deixei de beber. Como
bebi Tia Maria. O Tia Maria era mesmo [um licor] de café. Agora não bebo nada.
A jantar em casa bebo água. Quando vou jantar fora bebo um copinho de vinho
branco.
O deixar de jogar foi uma felicidade. Deus devia dizer: “Estás a pedir, mas
não tens vontade...”.
Disse isso e levou a mão à cruz
que tem ao peito.
Sim? Não foi de propósito. Já tenho pedido a Deus que me tire o vício de
fumar. Um dia, não fumei. Um dia. Estava engripada. No outro dia apetecia-me
andar por cima das paredes. Uma loucura. Que é que hei-de fazer?
Fale-me de Londres. Como é que
lá foi dar? Quanto tempo lá esteve?
Ora bom. Londres: a primeira vez fui em passeio com um casal amigo. “Pá,
vamos até Londres”. Eu já tinha estado em Paris. Ah, e já tinha estado em
Londres. Cantar. O senhor [que me levou lá] fez o jantar num hotel. O pai dele
foi um homem que fez um anúncio: “Quem casa, quer casinha. Mas só no Lapinha”.
Era o Eusébio que fazia o anúncio. Não é do seu tempo. Dava na televisão. Eram
uns apartamentos em frente ao Tejo. Como eram todos Benfiquistas, puseram o
Eusébio. Os filhos dele (dois malucos) gostavam muito de me ouvir cantar. Um
deles foi para Londres. Disse-me assim: “Tenho um espectáculo, para uns
convidados. Queres ir?” “Se me pagares, vou”. “Não dás uma borla?” “Eu, porquê?
Deves estar a reinar. Se fosse para alguém pobrezinho...” Lá fui. Já nem me
lembro quanto é que me pagou. Pôs-me num hotel muito bom.
A segunda vez fui com esse casal amigo. Já conhecia muitos sítios onde ia
às compras. Olha, ia muito àquele que o filho morreu, o da Lady Di. Como é que
se chama aquilo?
Harrods.
Andava o dia todo lá. Adoro Londres, por acaso. A última vez que lá fui foi
quando morreu uma amiga minha. Muita amiga. Tinha um restaurante numa rua
pequena, mas rua chiquíssima. Pediram-me para cantar numa festa, ela estava
mesmo a morrer. Não vai há muito, quatro anos. Quando comecei a cantar, ela era
empregada de mesa na casa de fados da Severa.
Safa-se com o inglês?
Não. Por preguiça. Depois fui com os pais da Marie Myriam, aquela francesa
que não é francesa. Mas pronto, não interessa. Aquela que ganhou um festival. Se
calhar também não é do seu tempo. [trauteia] Os pais eram portugueses. Tinham
uma casa de fados muito bonita [em Paris]. Eu ia para lá passar férias.
Chegou a Lisboa com 23 anos.
Muito rapidamente as pessoas gostaram de si.
Por acaso, foi. Foi muito rápido.
Era um estilo muito diferente
do da Amália.
De todas.
Como é que aprendeu a cantar
fado?
Minha querida, eu ouvia rádio no Porto, não é? Essa casa, a Severa, dava às
quartas-feiras. À terça, era o Carlos Ramos. Adega da Lucília. Estava sempre a
pau.
Transmitiam na rádio os
espectáculos?
Era. A Lucília, como era a dona, cantava em último. Nem fazia ideia de
quantos anos é que poderia ter. Se era bonita, se era feia. “Ai esta, meu Deus,
esta é que canta bem”. A Fernanda Maria: vi logo que era toda triques.
Viu pela maneira como ela
cantava?
Não a estava a ver, não é? Diferente da Lucília. Achei a Lucília mais
clássica. Havia outra, Maria José da Guia: também era fadista até à quinta
casa. Foram rivais, ela e a Fernanda Maria.
A sua rival era quem, quando
começou a cantar?
[peremptória] Ninguém! Era a Berta Cardoso [riso]. Não tinha rivais, mulher.
A Dona Berta gostava muito de mim. Aprendi muito com ela. Chamava-me Lecas.
“Lecas, anda cá”. Eu bebia as palavras que ela dizia. Uma senhora já de idade.
Vê lá, ela cantava um fado que eu fartava-me de chorar. Foi a coroa de glória
dela: [canta] “Quando vieram dizer à pobre mãe, que o filho tinha morrido lá na
guerra. Ela ajoelhou, a tremer, sentindo bem o desgosto mais dorido que há na
terra”. Não tive filhos que foram para a guerra. Mas ela emocionava.
O seu repertório vivia muito
mais da relação amorosa, do desencontro amoroso e do corpo. O seu fado mais
emblemático é “Meu corpo”. Os títulos de alguns fados: “Dei-te um nome em minha
cama”.
Tinha outro muito bonito, com muita força, mas foi do teatro e não pegou
tanto. “Fado para esta noite”.
Tudo isso é mais carnal.
[com troça] Carnal...
Então não é?
[riso] Não fui eu que escrevi. “Dei-te um nome em minha cama, aberta no meu
Outono, depois amei-te em silêncio que é uma forma de abandono.” Isso é do
Vasco Lima Couto. Que ia muito para minha casa.
“Ouve lá, amorzinho, dás-me de jantar?”. “Dou. Porra. Então.” Ia, bebia uns
grandes copos. Bebia o vinho e depois uns xixis, uns uísques. Uma noite apanhou
uma cadela. “Vou dormir cá.” Começou a fazer-me um fado, “Dei-te um nome em
minha cama”, para uma história que lhe contei. Houve uma frase qualquer que eu
achei que não estava bem. “Pá, estás com uma grande cardina e isto não me
cheira bem.” “Lá estás tu com as tuas merdas, ó intelectual!” Ele
chamava-me..., aquela que está ali na fotografia...
A Natália Correia, cuja
fotografia está entre outros poetas e fadistas, no corredor.
“Vai p’ro caralho. Nunca mais te dou de beber.” Pus o poema ao lado da mesinha
de cabeceira. “Hás-de ver que tinha razão”. De manhã: “Ó Bia, ai que mal que
estou.” Fiz-lhe um café. “Bebeste muito. Andas a curar alguma dor de corno que
não me contas. ‘Tadinho.” [riso] A gente já se tinha encontrado em África.
Também me fez lá um poema. “Isto não é poema para fado. É um soneto”. Qual
soneto. Estava lá um guitarrista que tocava muito bem. “Anda cá, ó Toninho.”
Quando não sabia o nome era Toninho. Eu já tinha metido a música.
Ou seja, encaixa numa estrutura
de fado tradicional um poema.
Tinha a métrica do fado. “Conheces o Fado Súplica? Toma lá, que isto é
fado”. É assim: [canta] “Não me peças amor, dá-me prazer. Com amizade se o
quiseres, mas só. As palavras caíram sobre o corpo.” Já não canto isto.
Quando acordou: “Eh pá, esta gaja é lixada. Esta quadra não tem pés nem
cabeça.” Deu a mão à palmatória. “Chama-me agora outra vez Natália Correia!”
Porque é que não gostava da
Natália?
Porque ela era uma petulante, uma estúpida. Tinha a mania que era a Sofia
Loren. Uma pessoa está a cantar e aquela filha da mãe sempre a falar... Com a
merda da boquilha, a fumar para cima da gente. Eu dizia assim: “Lá vem a
chaminé.” Tinha aquele séquito todo atrás dela. E um senhor dizia: “Bravo,
bravo. Bravo Beatriz da Conceição”.
Ou seja, rivalidades. Coisas de
gajas.
Fui lá à mesa: “Minha senhora, a senhora pode ser escritora, poetisa. Mas
eu sou fadista. A senhora respeita-me quando eu estiver a cantar. Senão um dia,
quando estiver a dizer a merda da sua poesia, vou lá e cago em cima de si.”
Deu-lhe o chilique. “Sérgio!”. Era o dono da Viela, na Rua das Taipas. “Sérgio!
Esta mulher ofendeu-me.” Eu perdia a cabeça.
Contam-se muitas histórias
dessas a seu respeito. As pessoas iam às casas de fado jantar e ouvir fado.
Quando faziam barulho, mandava-os calar. E rapidamente incompatibilizava-se com
as pessoas por causa do seu feitio.
Aos turistas, dizia: “Xarape, boy, ok?” Acabavam por se rir e calar. Nem
eram os turistas que me ofendiam. Eram os portugas. Uma vez na Adega Machado
estava numa mesa, ao cantinho, do lado esquerdo, um embaixador não sei de onde.
Cantei o primeiro fado. O guitarrista ouviu-os falar. “Lá vai haver trolha.”
Cheguei-me lá: “Oiça usted. Usted tiene que se calar. Isto é uma arte. Não é
para hablar, ok?”. Si, si. Foram comprar os meus discos e pedir-me autógrafos.
Eu estava mosca. “Não dou! Rua.” Levei logo uma bronca. E em África fiz o
mesmo, numa casa de fados. Como é que se chama a mulher de um embaixador?
Embaixatriz.
Ai que puta. Aiii que puta. Aiiii o machimbombo. Era assim [abre os
braços]. Falou, falou, falou. “Cala aí a boca, ó machimbombo!” Quase desmaiou.
O marido começou-se a rir.
Nunca teve complexos do sítio
de onde vinha.
Não! Porquê é que havia de ter?
Nunca tentou ser outra coisa,
refinar-se.
Mas eu sou refinada, minha querida.
Refinar-se no vocabulário, nos
modos.
Sou refinada. Mas estar a cantar um fado cheia de sentimento e estarem a
lixar-me, passo-me. Fico desconcentrada. Hoje, nas casas de fado, cantam para o
turismo. [canta e bate palmas num tom pateta] “Casa portuguesa, com certeza.”
Eu???, cantar a “Casa Portuguesa” e a “Lisboa Antiga”? Isso é que era bom. Esse
filme vai no São Jorge.
Que ambição é que tinha? Sabia
que era boa.
Sabia. E boa rapariga. Mas não tinha ambições. As coisas aconteciam-me.
Sabia que cantava bem. Não sou mouca, não é?
Surda.
Na contracapa do primeiro disco
escrevia-se que era “jovem, turbulenta e irreverente”, com “pose altiva e quase
sanguinária”. Passaram, a bem
dizer, 50 anos desde esta descrição.
E eu continuo a ser assim. Quem é que escreveu isso na contracapa?
Continua a ser assim porquê? A
vida não a amaciou?
Não. Nem me derrubou nem me amaciou. Quero dizer como o brasileiro: quero
ser como eu sou.
A altivez é uma das suas
características mais marcantes?
Não sei. Talvez. É assim porque sou assim. Não quero ser altiva. não faço
de propósito. Sou muito dócil.
É dócil?
Mas altamente dócil.
O que é preciso é saber
levá-la.
Está a ver? (Coisa engraçada para o fado: o que é preciso é saber levá-lo.
Bom título.) Se me pisam os calcantes, não.
Um outro título bom, de um fado
seu. “Ovelha Negra”.
Muito forte. “Passei fomes, passei frios, bebi água dos meus olhos”.
Viveu como quem está à beira do
precipício? Como uma personagem trágica, que bebe água dos seus olhos. Tem
também este verso: “... de ser coisa em vez de ser”.
“Chamaram-lhe ovelha negra, por não aceitar a regra de ser coisa em vez de
ser. Rasguei o manto do mito, pedi mais infinito, na urgência de viver.” Minha
querida, não fui eu que escrevi. Os poetas é que me viam assim.
Tenho um amigo advogado, Dr. Fernando não sei de quê. Chamava-me camarada.
Sentiu que eu era camarada. Muito amigo do Carlos do Carmo, o Charmoso. Nessa
altura eu estava na Tipóia, uma casa de fados muito bonita no Bairro Alto. Ele
ia ouvir-me e contava-me umas coisas sobre política. Sabia o que sentia desde
miúda; [eu sabia] quem era o Salazar e essas coisas todas, mas profundamente,
profundamente não percebia de política. Sabia umas merdas, como ainda hoje sei
umas merdas. Embora agora me esteja cagando para a política. O
primeiro-ministro, o secretário de Estado: quero que se lixem.
Esse sujeito, Fernando, disse-me: “Venho ouvi-la cantar para a levar no meu
coração, que vou para Paris”. Ia dar o fora. A PIDE já andava em cima dele.
Deixou-me um poema. “É como eu a vejo.”
Ainda o sabe?
“Mas porquê meu ser assim, porque trago dentro, em mim, tanta morte e tanta
vida. Esta fogueira inconstante, ora chama crepitante, ora cinza arrefecida.
Quase sempre esta descrença, este estado de indiferença pela verdade ultrajada.
E de repente esta fé, esta ânsia de pôr de pé cada ilusão derrubada. E logo a
fúria incontida, com que esbofeteio a vida quando ela humilha os vencidos. Ai
quem me dera ter paz...”
Quem é que eram os seus grandes
amigos no meio do fado?
Quase todos. Manuel Almeida, Manuel Fernandes. Já morreram.
Da Amália, alguma vez foi
amiga?
Não. Ela não queria ser minha amiga, eu queria que ela se fodesse também. No
entanto, as bichas amigas dela eram também amigas minhas. Diziam-me: “A Amália
gosta de ti. Gooooosta! Ela adorava que tu aparecesses lá com a gente”. Mas eu,
não. Quem é a Amália? A Amália é uma mulher como eu. Nem é mais, nem menos.
Nunca quis ter o sucesso da
Amália?
Não. Estava-me cagando para o sucesso da Amália. Não queria ser como ela.
Tem de reconhecer que era boa
cantora.
Claaaro! Puxa. Na minha casa, não me ouço a mim e ouço-a a ela.
Ainda hoje?
Sim. Estou sempre a ouvir um CD que um amigo dela me deu. Morro por aquele
CD. Nunca canta da mesma maneira. Que mulher de um cabrão, esta... Dá umas
voltas e depois já não é igual.
Numa só gravação do “Havemos de
ir a Viana” canta de três maneiras diferentes o verso: “Se o meu sangue não me
engana como engana a fantasia”.
Pois. Isso é que é arte. Agora, Mariza, rrrggggg, que horror. Quando me dão
discos dela – obrigadinha – passo logo para alguém.
A Mariza é das que dizem que a
Beatriz é uma referência.
Espera aí que já me pisaste um calo.
Diz ela, diz a Ana Moura, diz a
Carminho, diz a Cristina Branco. Dizem todas.
A Ana Moura e a Carminho, dizem de coração. Essa Cristina Branco, nem a
conheço.
Cantou com ela no outro dia, no
Casino do Estoril.
Ou ela cantou comigo. Foi aí que ela disse: “Boa noite, Beatriz”. “Boa
noite, dona Cristina”. Fodi-a logo, não é? E não lhe dizer: “Ouça lá, minha
senhora: conhece-me de algum lado?”...
Porquê esse gosto pelo
confronto?
Porque antigamente nós tínhamos muito respeito pelas fadistas. Fernanda
Maria, trabalhei com ela. Não era por ser minha patroa, chamava-lhe Dona
Fernanda. Ainda hoje continuo a chamar-lhe Dona Fernanda. Dona Celeste
Rodrigues. As mais novas dizem: “Ó Celeste...”, e eu continuo a chamar Dona
Celeste.
Da Celeste, é amiga?
Muito. Porra, adoro a minha querida Celeste. Mas adoro. E adoro ouvi-la
cantar. Ouço a Celeste e choro.
Como é que quer que lhe chamem?
Dona Beatriz!
E eu? [O fotógrafo pergunta: e
eu, que lhe trouxe um cafezinho?]
Para nós, é Bia.
São mal educadas por não lhe
chamarem Dona? Por todo o lado a elogiam.
É tudo mentira. São hipócritas. Palavra. Ai filha, não te quero ensinar
nada sobre o fado, senão ficas a saber tanto como eu.
A Ana Moura convidou-a para
cantar com ela no Coliseu.
Nos coliseus. Foi nos dois [de Lisboa e Porto]. A ela, gosto de ouvir. Puxo
pela minha cabeça para ver quem é que ela imita. Quem? Mas quem? Ninguém. A
Mariza começou por imitar a Dona Amália. Ainda hoje, quando canta a “Maria
Lisboa” e outras merdas..., por acaso não são merdas que são bons poemas, [imita].
Lá fora, só canta coisas da Amália. “Ó gente da minha teeeeerra”. O poema até é
bonito.
Ela vê-me: “Bia!”. Judas.
Ainda no outro dia me disse que
ela é simpática. Porque é que diz essas coisas da Mariza?
A gaja tem tudo marcado no papel como deve fazer. Aqui é a altura de
chorar. Acreditas? Fogo! Que jornalista do caralho me havia de sair. Para que é
que havia de estar a mentir? Eu seiiie.
Seiiie. Disse isso mesmo à
Porto, pondo um “e” no fim da palavra.
Sou de lá.
Quando canta...
Meu mal espanto. Vá.
Quando canta, pensa em quê?
Nada. Estou concentrada. Fico cinco minutos [sozinha], rezo um bocadinho.
Pai Nosso, Ave Maria. E entro. Às vezes, de estar tão concentrada foge-me uma
frase. Aconteceu-me no casino. Os guitarristas também estavam parvos. Os gajos
agora não dormem. Vão para a América, se chegarem hoje vão logo trabalhar nessa
noite.
Porque é que não se encontram
os seus discos?
Sei lá.
Que é que tem feito nos últimos
tempos? Além de emagrecer.
Este ano fui aos Estados Unidos. Eu, o Camané e mais umas galinhas. Um mês
e meio antes fui a Antuérpia.
Tem um agente que lhe arranja
esses espectáculos?
É o Hélder [Moutinho, também fadista e irmão de Camané].
Vive bem? O que ganha é suficiente?
Sim. Às vezes... E tenho 300 euros de reforma.
Porque é que está a emagrecer
tanto?
Isso queria eu saber. ‘Tou magra mas não é de tomar comprimidos. Foi de
repente. Nem tenho forças nem nada.
Quantos quilos emagreceu?
Dezassete. Pesei-me no hospital, em casa não tenho balança. Cinquenta
quilos!
Vive sozinha?
Com um periquito. [riso] Não tenho. Nem gatos nem cães. Incomodavam-me.
Estou a dormir; agora vem o cão para cima da minha cama? Não.
Continua a ter o ritmo da
fadistice?
É. E não saio de casa.
Que é que fica a fazer?
A ver televisão. Como televisão. Falo sozinha: “Este programa, que coisa
horrível.” E o canal Hollywood é uma grandessíssima merda. As séries, igual. Só
monstros. Até sonho depois com isso. Só gosto de filmes de amor.
Deita-se de manhã, acorda as
três da tarde. É isto?
Ontem deitei-me às duas e meia, para ver se hoje estava bem. Acordei. Fiz
um chazinho. Tomei mais um Lorenin. Qualquer dia morro do Lorenin. Queria estar
fresquinha hoje. Até queria ir ao cabeleireiro. Quando acordei e olhei para o
relógio, foi um desassossego.
Qual é o seu maior defeito?
Tenho vários. Mas tenho mais virtudes que defeitos. Queres guerras, mas eu
não te dou.
Não quero nada guerras. Depois
também lhe pergunto pelas qualidades.
O meu maior defeito é ser teimosa. A minha maior qualidade é ser uma pessoa
muito humana e amiga.
O que é que hoje em dia lhe dá
prazer?
Nada. Nada me dá prazer. Já nem suporto ir aos fados. A não ser que me
digam: “Vamos ouvir o Camané.” Isso vou logo. Até vou descalça. Ouvir a Ana
Moura? Descalça vou, para a fonte, Leonor pela verdura.
Cantar, dá-lhe prazer?
Agora não. Agora é por obrigação, para ganhar dinheiro.
Acabamos a entrevista.
Está feito?
Quer dizer mais alguma coisa?
Não.
Entrevista de Anabela Mota Ribeirom, publicada no suplemento 2 do jornal Público de 29-07-2012.
As fotos a cores de Nuno Ferreira Santos foram copiadas do suplemento do jornal Público.
Beatriz da Conceição. Foto copiada do jornal Público. 2012, Nuno Ferreira Santos |
ge ni al
ResponderEliminarCaramba! ninguém faz entrevistas assim! Fabulosa.
ResponderEliminarAbsolutamente genial esta Senhora!
ResponderEliminarSem medos, rodeios ou meias palavras, chama todos (bois e vacas) pelos nomes!
Parabéns também à Anabela Mota Ribeiro!