Manuel Cintra Ferreira
(1942−2010)
Coisas boas em jornais
Cineastas favoritos: John Ford, John Ford e John Ford. Filme preferido:
«A Desaparecida» que, reza a lenda terá visto mais de uma centena de vezes. Duvida-se
que acredite já saber o filme de cor. Actor de eleição: John Wayne. Local de
férias habitual: Campo de Ourique. Há aqui uma soberana harmonia que diz muito
bem da pessoa que assim se passa para a prosa, nada turva, homericamente simples,
porque quem sabe, sabe e não precisa de florear sobre o vazio. É muito fácil
adivinhar de quem assim se fala. Manuel Cintra Ferreira, o crítico mais
carismático da «praça» também por todas estas idiossincrasias, conhecido como
possuidor de uma memória assombrosa e uma capacidade de trabalho verdadeiramente
extraordinária.
Manuel Cintra Ferreira na antiga sala da Cinemateca. 1991.
Foto Carlos Didelet, copiada do Jornal Se7e.
Segundo ele (porque eu acredito que se
trata de um daqueles casos nascidos já com um gene estranho qualquer inatamente
adaptado à coisa cinema), segundo ele, o vírus começou aos seis anos e foi o
«coup de foudre». O filme era o «José do Telhado». As luzes, o movimento, tudo aquilo me apaixonou
imediatamente. A
partir daí sempre que podia estava lá caído.
Depois, foi como sempre é: aquilo que nos interessa passa doravante a
ser objecto de um esquadrinhar sem tréguas até que o coração nos doa, e tem que
ser muito. Primeiro os actores, que são
para o garoto a parte mais real, estão ali, mexem-se. A seguir comecei a querer
saber quem é que fazia, como é que se fazia, porque é que se fazia. Lia tudo o
que havia. Não é muito dificil imaginá-lo tardes esquecidas
na Biblioteca Nacional, quando esta era ainda sita no largo do mesmo nome,
embrenhado em alfarrábios possantes, jornais e revistas (O «Diário de Noticias», o «Século»), até chegar à fase de começar a elaborar fichas
para nunca mais perder a mania.
A primeira prosa aconteceu de maneira
curiosa e pela mão de Luís de Pina. Pode-se dizer que foi ele quem, sem me conhecer,
me iniciou nestas coisas da escrita. Foi através de duas cartas que lhe enviei
a pedir (muitas) informações. Estava-se em 1959. Mais tarde MCF ingressa
nos circuitos cineclubistas, que a curiosidade não era qualquer circuito comercial
que a satisfazia. Acasos acabaram por o levar para o Cineclube Imagem, onde
acabou por fazer parte da direcção durante vários anos. Foi por essa altura que comecei a escrever as minhas notazinhas — como
ainda hoje, modesto, continua a referir os seus textos — em regime de voluntariado, é claro. Éramos uns carolas que faziam de
tudo, desde traduções a textos originais. Foi aí que me tornei um verdadeiro
militante do cinema.
John Wayne em A Desaparecida de John Ford.
No início dos anos setenta, devido a certos problemas que começavam a
infectar o cineclubismo, afastou-se um pouco. Como aficcionado que se preza,
porém, ia ver tudo, comprava todos os livros (insiste em ser sempre o primeiro
a descobrir as novidades das Distris) e dedicava-se às revistas que iam aparecendo.
Os sacrossantos Cahiers Du Cinema — que
já então eu não via com muito bons olhos — (oh preconceitos!), a Positif, a
Cinema Nuovo. Americanas nicles. E continuo
a achar que os americanos têm vindo a colocar as questões do cinema de forma
muito mais correcta que os franceses.
No período que sucedeu imediatamente ao
25 de Abril, também para estes lados as coisas aqueceram e começaram a surgir
publicações nacionais diversas que MCF se diverte a recordar, fazendo sempre a
vénia devida a Lauro António e a Duarte Ramos, os grandes impulsionadores de
quase todos os actualmente nomes grandes da crítica. Entretanto, ia mais sobrevivendo
que vivendo ali pelas bandas da Rua do Quelhas, como realizador da Antena Um, fazendo
coisas mais burocratas que criativas. Não gosta de se alargar sobre o assunto que
visivelmente não deixou grandes memórias. Até a Maria José Mauperrin o convidar
para uma participação regular no memorável, saudoso, Café Concerto, onde apresentava apontamentos de tudo o que ao
cinema dissesse respeito.
Manuel Cintra Ferreira no Café Concerto. 1983.
Foto copiada do Jornal Expresso.
A partir do meio dos anos oitenta já o
seu percurso é público e a notoriedade inabalável. Aconteceu o «Expresso» (foi uma escola óptima, fundamental, com o
João Lopes, o Leitão Ramos, o A.M. Seabra e o Vicente Jorge Silva), a Cinemateca, a convite de Luís de Pina e
Bénard da Costa e, mais recentemente, o «Público», onde escreve «como se disso dependesse a sua sesta». O Vicente meteu-se nessa história e fomos
convidados a quase juntar a mesma equipa. Devo dizer que assim à primeira vista
fiquei um bocado receoso. Mas acredito sempre numa experiência e nunca me arrependo.
Aprendemos sempre qualquer coisa. Se eu soubesse o trabalho que me ia dar!...
Ri-se e percebe-se que não está nem um pouco arrependido. Da capacidade de
trabalho que aquelas páginas testemunham avança muito simplesmente: é que não consigo estar sossegado. Uma
conversa, um filme, até a dormir estou sempre a pensar em coisas para escrever. Garante que dorme o normal, deita-se à
uma e levanta-se às sete. O normal.
O normal?! Também deve achar normal os intermináveis ficheiros
que possui sobre cinema, em papel e, sobretudo, na cabeça. E claro que é inacreditável.
Só mesmo assistindo à frequência com que responde prontamente às perguntas de
toda a gente sobre filmes estreados há um, dez, cinquenta anos, como se nada
fosse.
Da crítica prefere não tecer
considerações pessoalizantes, obviamente melindrosas, mas frisa o facto de ter
havido períodos bem mais interessantes que o actual. Nos anos 30, altura do
Cinéfilo e da Imagem, de António Lopes Ribeiro e José Gomes Ferreira, em que a critica era bastante capaz e agressiva e,
depois, na altura do cinema novo, em que
a critica era muito mais viva, provocante e, em certa medida, mais eficaz, não
só para o público leitor como para a própria actividade cinematográfica. Sobre
todas essas questões que são também o cinema, MCF afirma ser atribuição do
critico pronunciar-se, coisas tão
desagradáveis como ver um filme ser exibido num formato diferente daquele em
que foi concebido, ou o desastre que é a exibição ser agora de pior qualidade
do que quando havia censura, ou da forma como os filmes portugueses são, ou não
são, exibidos. Mas, remata: o melhor
crítico que existe é o tempo. Daí achar um pouco forçado autodenominar-se crítico.
Sou um tipo que gosta daquilo que faz,
tenta valorizar aquilo que gosta e não sente necessidade de destruir necessariamente
aquilo de que não gosta.
Do que gosta verdadeiramente é do
conceito de comunhão que Ford foi o melhor a encenar, a amizade de uma consistência que não é pedida, é dada. É algo que é
mais ideal que existente: é pena... O gosto pelos temas fordianos não é
igual ao amor dos natais ou sequer a uma relação familiar particularmente
motivante. Sou, digamos uma pessoa com raízes.
E tenho uma memória com uma certa força. São, decerto,essas raízes, que lhe
permitem dizer que o cinema é Ford e o resto são satélites, ou que Portugal é
Lisboa e o resto é paisagem. Sem ter medo dessas graças generalizantes porque
sabe muito melhor que muita gente que é também dessas substâncias, crenças
irremediavelmente certas, que são feitas as raízes. São com certeza elas também
as responsáveis pela imensa disponibilidade de MCF que continua a correr com muito
gosto, incansável, a enganar o tempo e as matérias a seu bel-prazer.
Exactamente como faz o cinema.
Teresa Carmo
Se7e
21-11-91
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