Texto de
Manuel S. Fonseca
16 de Outubro de 2010
Elmyr de Hory. Londres, Inglaterra. 1972. Terence Spencer.
Foi um charlatão que é, como bem sabem,
o nome que se dá a certos homens de talento. Elmyr iluminou o século XX, de
1906 a 1976. Para os convenientes efeitos de registo chamemos-lhe Elmyr de
Hory. Um volátil De Hory que mudou até à exaustão da capacidade do alfabeto:
Bory, Cory, Dory, até Zory, para já não falar de Dory-Boutin, Herzog, Hoffman
ou Cassou. You name it! Em português: digam nomes!
Mas
estou, já é costume, a contar mal a história até porque é difícil
estabelecer-lhe a biografia e a investigação não é o meu forte. Nasceu na
Hungria, em família aristocrática – e é mentira. O pai era embaixador
austro-húngaro – e é mentira. A mãe descendente de consolidada linhagem de
banqueiros – e é mentira. Tudo factos, tudo mentira.
Aos
18 anos estava em Munique a estudar Belas-Artes. Dois anos depois, em 1926, já
está em Paris, onde foi aluno, muito bom, de Fernand Léger. Tudo factos, tudo
verdades. Em Paris, converteu-se ao prazer da vida, da seda, do champagne, das
festas, do grande estilo.
Os
anos totalitários que precedem a guerra, apanham-no em Budapeste. Tem uma breve
passagem pela prisão, por ligação a um espião britânico. Soltam-no, mas um ano
depois os nazis espetam com ele num campo de concentração, acusando-o de judeu
e homossexual. Sabe-se que não era judeu e sabe-se que era homossexual convicto
e praticante. Foi espancado, mas o seu forte instinto de sobrevivência teve
artes de engendrar a fuga de um hospital de Berlim. Desenhou, através do
império nazi, uma fina linha de trapaças e subornos que o trouxe de volta a
França.
Elmyr de Hory, ao lado de um Matisse forjado por ele.1969. Ibiza, Espanha. Pierre Boulat.
Quando
a Guerra acabou, o brilhante Elmyr tentou ganhar a vida com os quadros que
pintava. Descobriu que mesmo que não morresse à fome, não vestiria casaca e não
entraria no mundo de riqueza, volúpia e celebridade a que aspirava. Já se sabe:
com a fome vem sempre uma grande vontade de comer e Elmyr descobriu que
desenhava Picassos com uma facilidade cândida, infantil. Como há homens que
nascem com uma mulher dentro deles e vice-versa, Elmyr descobriu que o seu
corpo abrigava outro Picasso. Pelo menos no circuito que se estabelecia entre
as suas mãos, os seus olhos e o seu cérebro.
O
primeiro Picasso vendeu-o a um amigo inglês que o tomou, para silenciosa
surpresa de Elmyr, por um original. Há silêncios que desencadeiam vocações.
Nesse dia de 1946, Elmyr deixou-se cair nos braços da fraude e da falsificação,
num certo sentido, num mundo mágico de trickery e make-believe. Paris voltava a
ter o seu Houdini. Primeiro os desenhos de Picasso, a que prontamente Elmyr
acrescentou desenhos de Matisse, Modiglinani e Renoir.
Clifford Irving, sua mulher Edith, Elmyr de Hory, Gerry
Albertini e Bob Kirsh. 1972. Ibiza, Espanha. Pierre Boulat.
Vendia-os
porta a porta, galeria a galeria. Essa era a parte mais difícil. Elmyr tinha o
seu orgulho e o acto de venda, a persuasão do seu interlocutor, era-lhe
estranha. Muito mais tarde, já nos anos 50, entrou numa galeria de Los Angeles,
abriu o portfolio e Frank Perls, o galerista, ficou abismado com os Picassos e
Modiglianis. Tão abismado que desconfiou. Fechou a pasta atirou com ela a
Elmyr, gritando-lhe que a porta da rua era a serventia da casa. Elmyr saiu
engolindo a humilhação, mas já na rua voltou-se para Perls e perguntou-lhe:
“Mas acha que os desenhos estão bem feitos?” E Perls sabia, soube logo, que aqueles
desenhos eram obras-primas de falsificação.
Era
um falsificador gentil. Não estava ali para enganar ninguém: queria que os seus
Picassos e os seus Renoirs fossem amados. Esse amor era a primeira e mais
importante remuneração. Acabou por organizar-se para potenciar o melhor de si.
Entregou a terceiros a venda. Foi obviamente vítima de fraude. Todos os
parceiros com que trabalhou – arduamente, entenda-se – o enganaram
miseravelmente nas contas.
Pinturas falsas de Matisse e Modigliani, pintadas por Elmyr de Hory.
Elmyr
teve a sua maior glória na década de 50. Viajou até aos Estados Unidos e era
como se tivesse chegado ao paraíso. Tinha visto de 3 meses, ficou uma década.
Dos desenhos passou aos óleos. Comprou livros (só queria um décimo da
biblioteca de arte dele) e estudou estilos. A pouco e pouco alargou o seu
portfolio: Vlaminck, Chagall, Toulouse-Lautrec, Dufy, Derain, Degas, Bonnard
vieram juntar-se aos primeiros mestres. Não tenho a certeza, mas rezo para que
nunca tenha falsificado um Léger. (Hei-de ser sempre um sentimental e tenho a
certeza de que Elmyr também o era).
Vai
sem dizer que Elmyr não era um copista. O que ele desenhava, o que pintava,
eram novas obras desses mestres. Genuínas, inéditas. Geniais, como genial era o
Matisse que vendeu ao Fogg Art Museum, na Universidade de Harvard. Os
peritos viram e os peritos reconheceram-lhe a autenticidade. Compraram-no e,
digo eu para envernizar mais esta história, expuseram-no.
E foi
aqui que se torceu da que sabem o belo rabo. Mais tarde, novas peritagens
descobriram a fraude. E outros coleccionadores – ó os texanos!!! * –
descobriram que tinham sido tão suavemente comidos.
Elmyr de Hory e David Walsh. 1969. Ibiza, Espanha. Pierre Boulat.
Os
anos que se seguiram foram anos de fuga e clandestinidade. De luxo ainda, em
Ibiza. Os anos em que, com alguma bondade, Elmyr, o charlatão tímido, permitiu,
condescendente, que outro charlatão, Clifford Irving ( o escritor que tinha
forjado uma biografia de Howard Hughes e por isso tinha sido preso) escrevesse
a sua história. E que esse mago da manipulação chamado Orson Welles o fixassse
para a eternidade, no filme F for Fake.
Informado
de que o governo espanhol cedera ao pedido de extradição da França, o que o
significaria acabar os seus anos na cadeia, a 1 de Dezembro de 1976, Elmyr
tomou uma overdose de comprimidos e morreu nos braços de Mark Forgy, seu
companheiro.
* Algur H. Meadows, magnata texano do petróleo, descobriu que tinha a mais ampla, mas também a melhor colecção do mundo do falsificações de Degas, Bonnard, Matisses, Picassos e outros pintores menores. Com um sentido de humor mais negro do que o ouro que os tinha pago, Algur espumou de raiva e lançou todos os seus cães, do FBI à Interpol, em busca dos mágicos falsificadores.
Texto de
Manuel S. Fonseca
encontrado em www.etudogentemorta.com
16-10-2010
Um falso Van Dogen pintado por Elmyr de Hory.
(Fotos LIFE Archive)
Pinturas falsas de Elmyr de Hory encontradas na net
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