Outras Loiças

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Paul Newman - O doce pássaro

por
João Bénard da Costa
A Casa Encantada
Público, Domingo 5 Outubro 2008


Post reformulado, retirei o recorte do jornal Público 
e coloquei apenas o texto de João Bénard da Costa.

Geraldine Page como Ariadne Del Lago e Paul Newman como seu amante, Chance Wayne, fumando haxixe juntos 
em uma cena da produção da Broadway "Sweet Bird of Youth" de Tennessee Williams. NY. 1959. Gordon Parks.


1. A gente nunca imagina o que a vida nos reserva. Nos anos 40 e 50, nunca imaginei que havia de chegar o dia em que Alportuche deixasse de ser a minha praia na Arrábida e no mundo. Nos anos 60 e 70, nunca imaginei que fosse desaparecer a Praia dos Pescadores, quando, depois de carregado luto pela praia da infância e da adolescência, a ela me costumava a habituar. Já nesses anos a entremeava com o Quereiro, a duna meigamente opulenta que fica no fim do Portinho. Nos anos 80 e 90, ela tornou-se quase um exclusivo como exclusivas eram as idas e vindas no yellow boat, dos restaurantes do Portinho (Galeão, primeiro, Beira Mar, depois) até esse areal relativamente longínquo – que alguns, menos preguiçosos, percorriam a pé, em coisa de vinte minutos. Mas o século XX acabou e, no actual, a opulência do Quereiro foi-se, como se foi a meiguice. Este ano, a devastação completouse. Duna de areia? Digam antes cova com areia, que tudo que era convexo côncavo se tornou, com a mesma mágoa sem remédio com que assistimos a semelhantes esvaziamentos nos humanos. “Também morre o florir de mil pomares / e se quebram as ondas no oceano”, como escreveu Sophia há muitos, muitos anos.
Assim, de praias na Arrábida o que resta? Uma língua de areia a meio do Portinho, cheia de barracas e palhotas de colmo, onde me dizem que em Julho e Agosto (que eu nesses meses não apareço por lá, senão quando estou muito distraído) se juntam carcavélicas multidões. E eis que chegado a esta idade, eu, crescido embora (Nuno, direitos de autor) em praias quase privativas, me vejo obrigado a palhotas dessas, após uma caminhada de um quarto de hora por um caminho infecto, povoado de dejectos, acotovelando-me com turistas de meia-tigela ou famílias barrigudas, alimentadas a doritos.

Paul Newman falando com Tennessee Williams, depois da estreia da 
peça "Sweet Bird of Youth" na Broadway.  NY. 1959. Gordon Parks.

2. Sábado 27 de Setembro. Sozinho, percorro eu esse melancólico carreiro, quando, numa volta dele, o telemóvel desata a tocar. O número nada me dizia, mas atendi. Do outro lado, uma voz feminina pedia desculpa pelo “incómodo”, mas não sabia se eu sabia que tinha morrido “o actor Paul Newman”. Eu não sabia. Então perguntou-me se eu não queria dar um depoimento (era de uma rádio) sobre “como me situava face à morte do actor Paul Newman”. “Como me situava?”, respondi e perguntei algo atónito. Apeteceu-me dizer-lhe que me situava numa curva de caminho escabroso, mas, como nos vamos habituando a tudo, aceitei o tal comentário, debitando meia dúzia de lugares-comuns ou de clichés feitos. Acho que até cheguei aos jeans e aos olhos azuis. No fim, a senhora, menina ou lá o que fosse saiu-se com esta: “Mas lamenta ou não lamenta a morte do actor?” Só nessa altura desliguei.
Apesar de saber Paul Newman moribundo e de saber até que deixara o hospital onde fora vencido pelo cancro, para poder morrer em casa dele e na cama dele, a notícia não me deixou igual ao litro. Quase cinquenta anos da minha vida os vivi com Paul Newman e passei mais horas com ele, em salas escuras, do que com quase todos os mortais que conheço.
O céu, num dia glorioso, tinha a cor dos olhos de Newman. Mas, quando olhei para o mar, não me consegui lembrar, do pé para a mão, de nenhum filme com Newman à beira dele. Não tardei a lembrar-me. Até do meu favorito (tudo bem pesado) que é a adaptação de Richard Brooks da peça de Tennessee Williams Sweet Bird of Youth (1962) que em Portugal se chamou – vá-se lá saber porquê – Corações na Penumbra. Mas se, nesse filme, como em tantos outros (quase todos os dos anos 60 e 70) são recorrentes os planos do torso nu do actor – esse torso de estátua grega, quando a pedra parece carne e apetece mordê-la –, esses planos não têm que ver com praias ou banhos de mar. Depois, pensei que o mesmo se passa com quase todos os filmes de Marlon Brando, nos anos da sua juventude, e se passa com todos, todos mesmo, de James Dean. Essa trindade de actores, que impôs definitivamente o Método de Strasberg e Kazan em Hollywood, depois de o ter imposto nos palcos, e que vivia tanto dos formidáveis ou atrevidos rostos como da beleza dos corpos, despiu-se largamente da cintura para cima (da cintura para baixo, nesses tempos, nenhum homem se despia em filme que se visse), mas, se a nudez era tão perturbante, tal se devia a estar mais associada a casas e camas do que a espaços livres. Talvez porque, nestes, a seminudez masculina fosse e seja visão habitual que, nos melhores casos, se pode admirar mas não cobiçar, enquanto nos outros já havia o acréscimo da transgressão em que o homem sem camisa levava a pensar no homem sem calças. Quem diz homem diz mulher? Talvez, mas já não estou tão certo e não é para digressões dessas que estou aqui hoje, regressado de férias. 



Tributo a Paul Newman (1925-2008).


3. Volto ao meu Sweet Bird of Youth. Paul Newman criou o papel no palco em 1959, numa encenação de Kazan, e essa criação, como as que teve no Picnic de William Inge ou em Desperate Hours de Joseph Hayes, foram decisivas não só para o impor como actor, como para os contratos subsequentes com Hollywood.
Mas entre a peça e o filme há modificações de bom tamanho e quase todas motivadas por razões censórias. A peça terminava com a castração de Newman pelo clã Finley, que assim se vingava da relação provocantemente sexual que este tivera com o anjo da família, sintomaticamente chamada Heavenly (e celestial foi Shirley Knight, que criou o papel nas telas, e celestial não sei se o foi Diana Hyland, que o criou nos palcos e nunca vi em vida minha). O love-ticket a que o irmão de Heavenly se refere era o propriamente dito. No filme, não havia nenhuma castração. O que ficava esmagado no final era o belo rosto de Newman, após uma sova bruta. Chamaram a Brooks “the chief castrator of honestly cynical stage art” e a esse nal “the cup-out ending to beat all cup-out endings”.
Nunca concordei. E nunca concordei porque, no filme pelo menos, o “sweet bird of youth” de Paul Newman está muito mais na cara e nos olhos (esses olhos de que a câmara se aproxima cada vez mais, cada vez mais) do que no sexo, ou mesmo na relação com Heavenly. É certo que ele é o gigolo de uma envelhecida ex-star (prodigiosa Geraldine Page, que também fizera o papel nos palcos), é certo que é esta quem, acariciando-lhe o torso (nu), fala de “sure hard gold”. Mas esse ouro, se brilha no corpo, brilha ainda mais no olhar azul e louro de Newman. Ora se esse olhar (“your good look”) é o que fundamentalmente revela a personagem, na sua crucial divisão, é esse olhar que é preciso destruir e é esse olhar que é efectivamente destruído, quando Shirley Knight, vestida de branco, o leva no Cadillac negro, no final. Face à personagem criada por Williams e Brooks (mesmo que de costas viradas um para o outro) esse final é mais coerente do que uma escabrosa cabidela. Não é “Hollywood frou-frou”, como à época se disse, mas é o final inteiramente poético que as personagens pediam e mereciam. Em Sweet Bird of Youth, Richard Brooks apenas levou mais longe e mais dentro o que já fizera, três anos antes, quando adaptou, também com Newman e também de Williams, Cat on a Hot Tin Roof. A homossexualidade ou frigidez da personagem (casado com uma “gata” que era nem mais nem menos Elisabeth Taylor) não é explicitada no filme, mas cada plano do corpo de Newman reenvia à carnalidade abafante dessa família de tragédia grega. 

Paul Newman às compras com sua mulher, Joanne Woodward. NY. 1959. Gordon Parks.


4. Paul Newman foi grande quase até ao fim, pois só em 2005 se retirou. O célebre “good look” era ainda bem visível (talvez “the best look”), quando finalmente lhe deram o Óscar em 1986, pela sua criação em The Color of Money de Scorsese, sintomaticamente um remake do prodigioso The Hustler de Robert Rossen, em que já era esmagado e esmigalhado e em que já era tão sensualmente masculino como joguete de deuses, que uma inusitada fragilidade não lhe permitia dominar.
É talvez por isso – resumindo e simplificando muito – que eu nunca concordei com os que o consideravam uma réplica menor de Brando ou de Dean. Percebo Kazan, quando este disse que ninguém como Newman compreendeu o espírito do Método, representação de contradições. Os braços suplicantes, as mãos que tremem enquanto diz “Listen to me” ou tantas outras marcas da escola nunca são nele cliché fácil, mas o sinal do desacordo entre tão belo exterior e tão convulso interior. Exemplo flagrante e quase inicial: a sua versão de Billy the Kid, de Arthur Penn e Gore Vidal (The Left-Handed Gun, 1958) quando o teenager William Bonney (Billy) era apanhado por uma guerra absurda e dela trouxe a amargura revoltada que o levou a matar sempre por uma razão e sem razão, em desenraizamento longínquo e final. Quando o filme se estreou em Portugal, em descoberta quase simultânea de Arthur Penn e de Paul Newman, com o título parvíssimo Vício de Matar, Ruy Belo, que aqui evoquei na minha última crónica de Verão, escreveu um poema espantoso. Esse que começa com a pergunta  “Para onde há-de ir billy the kid?”. E mais adiante: “O caminho da ida e o caminho da volta / não são afinal o mesmo caminho / Billy conhece agora o destino. Sempre inquieto sempre a correr / amou a vida como se amar fosse morrer / Sabe-lhe bem ser de novo menino.”
Releio o poema e penso em Paul Newman. Ele foi tão grande em velho. Ele foi tão bonito em velho. Mas quando pensamos nele – doce pássaro – é a juventude o que mais lembramos, é o novíssimo Paul Newman – corpo e olhar ou corpo e alma – de quem temos mais saudades. E sabe-nos bem que ele seja de novo menino. Mudando Billy por Paul: “Paul que nunca soubera fugir / nem mesmo pergunta para onde há-de ir.

João Bénard da Costa
A Casa Encantada
Jornal Público
Domingo 5 Outubro 2008


Repare-se na expressão do rosto da mulher que está sentada ao lado 
de Paul Newman num programa de TV em 1958. Leonard Mccombe.

Paul Newman. 1967. Mark Kauffman.



(Fotos LIFE Archive)



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