"O que faz que valha a pena viver a vida?"
Esta questão foi a base para Wim Kayzer (Haia, 1946) holandês, jornalista , cineasta e escritor,
fazer o programa "Van De Schoonheid en de Troost", (O Belo e a Consolação) em 2000.
«O clímax da série "O BELO E A CONSOLAÇÃO" é este episódio final, que se baseia no encontro da maioria dos convidados. Durante a realização da série morreram dois dos personagens principais: Yehudi Menuhin e Richard Dufallo. Outros quatro não puderam participar por razões menos importantes, os seus trabalhos impediram a viagem para a Holanda: Vladimir Ashkenazy, Stephen Jay Gould, Steven Weinberg e Edward Witten. Mas os outros 20 entrevistados, vieram de todos os cantos do mundo a Amesterdão para trocar pontos de vista sobre "O BELO E A CONSOLAÇÃO". Primeiro eles foram olhar para a sua própria exposição no Museu Stedelijk. Cada participante tinha uma obra de arte escolhida pelo próprio, algo que para ele ou ela, retrata-se "a beleza e a consolação". A enorme variedade de trabalhos é fascinante. E é interessante ver cada um explicar porque, escolheram uma coisa ou outra. Depois seguiu-se o debate na galeria Zaaijer, acabando com um concerto de música dedicado a todos eles no próprio local de filmagem do debate. O resultado é um extraordinário programa de quase 3 horas.»
Esta série de Wim Kayzer, foi produzida por Vera de Vries, e apresentada pela primeira vez pela televisão holandesa VPRO, em 2000. Encontrei referencias a um livro em holandês de Wim Kayzer de titulo "Het boek van de schoonheid en de troost" (O livro da beleza e consolação), que saiu na mesma altura em que a série foi apresentada na Holanda. Pela pesquisa que fiz só teve edição holandesa. Segundo informação recolhida à pouco tempo (não consegui confirmar), esta série foi ou ia ser outra vez reeditada na Holanda e só lá, com legendas em holandês.
Aqui ficam para quase todos, os 24 programas + O Debate de "O Belo e a Consolação", legendados em português. Até já!
Da beleza e da consolação
Texto de João Lopes
Jornal Expresso
11 de Janeiro de 2002
O ano que acaba de morrer não nos deixou propriamente um rasto de beleza, nem um sabor de consolação. Foi o ano em que percebemos que essa simples ideia (mãe de toda a ética) de que o ser humano é um fim em si mesmo, ainda não se globalizou. Pelo que qualquer um de nós pode ser assassinado, a qualquer hora, globalmente, em qualquer lugar do mundo. E foi um ano em que a morte atacou demasiadas pessoas perto de mim. Amigos de juventude, ainda cheios de projectos, e, o que é talvez mais doloroso ainda (se é que a dor absoluta admite graus) filhos de amigos. Que digo àquele amigo cuja filha morreu, neste tão escuro Setembro de 2001, dois dias depois de completar dezassete anos? Que consolação lhe posso oferecer face a esse definitivo caixão branco, diante do qual brilhavam as dezassete rosas - frescas, lancinantemente vermelhas, insuportavelmente belas - que ele oferecera à filha, no dia do seu aniversário?
No desconsolo infinito das lágrimas do meu amigo, um homem que é o esboço original do riso e do afecto, encontro a prova derradeira de que beleza e consolação formam uma única matéria incandescente, essa matéria humana, visceral, iluminada e concreta a que chamamos amor. Só o silêncio uivante dos inconsoláveis consola, enchendo o mundo da voz apaziguada dos mortos muito amados. Que diremos, face a tão desmesurado amor? Que responder à mulher de um outro amigo morto, nesse instante em que ela lhe acaricia o belo rosto frio e sussurra: « Porque é que a morte não bate à porta e pergunta: 'quem posso levar?' Porque eu, por exemplo, tinha-lhe pedido que me levasse a mim, em vez dele.» A gente responde: «Coragem», «Força», «Conta comigo para tudo o que precisares» e outras frases sem importância nenhuma, porque eles, os que entregaram à eternidade dos seus mortos a beleza e a consolação da vida, já não ouvem essas nossas pobres palavras. Palavras medidas, sensatas, do deve-e-haver da vidinha em que nos aninhamos: «Afinal, ainda tens outra filha.» E o meu amigo sorri, o seu sorriso sem princípio nem fim, desta vez numa estranha versão resumida de ironia. Sabe que a lógica do pneu sobresselente acalma os que se julgam ainda completamente vivos. E sabe, acima de tudo, que cada filha é única. Sabe-o mais do que todos os homens que conheço, porque não conheço outro que, como ele, tenha herdado a tempo inteiro as duas filhas dos dois divórcios. Alimentou-as e amou-as e serviu-as sem descanso, telefonava-lhes a cada intervalo das reuniões, esticava e encolhia os horários da vida real para nunca lhes faltar - como se convencionou ser próprio das mães.
Um dos mais arreigados mitos do eterno feminino é esse de que a beleza e a consolação seriam atributos das mulheres. Na luminosa definição de Eduardo Lourenço, o mito é «vida que não passa na vida que passa». Assim, pior ou melhor, às mulheres continua confiada a orquestração dos grandes silêncios da vida - talvez por isso os grandes compositores sejam quase todos homens. O masculino continua a ser teórica e praticamente inconsolável. Educado para a acção, arredado desde a mais tenra infância da lentidão da mágoa, do calor sujo, doloroso, dos afectos. Às mulheres, desde há umas décadas, nas sociedades ocidentais, abriram-se-lhes as comportas da acção, mas permitiu-se-lhes - ou exigiu-se-lhes, o que, com maior ou menor canseira, vem dar ao mesmo - que continuassem a providenciar a beleza e a consolação do mundo. Mas há homens, como este meu amigo, capazes de reivindicar este privilégio, e de provar que nenhuma lei genética obriga o masculino a cingir-se ao lado infantil, ritual, repetitivo e brutal da vida.
Penso nisto - e disto faço carta de propósitos para 2002 - por ter revisto na SIC, às três e tal da madrugada, uma série holandesa sublime, precisamente intitulada «Da Beleza e da Consolação». Não tenho dúvidas de que o programa terá um efeito terapêutico imediato sobre potenciais suicidas, e sempre defendi o direito à insónia como técnica de superação dos limites solares da vida, mas gostaria de poder partilhar este prazer com a grande maioria da população que se levanta de manhã cedo para enfrentar o mundo. Até porque suspeito que é essa imensa maioria a mais necessitada da reflexão do sonho. O ponto de partida desta série desenha-se com a simplicidade portátil de um lápis: trata-se de perguntar a alguém o que representa para ele (ou ela) a beleza e a consolação. Então, filmam-se essas imagens de beleza e/ou consolação (porque há, por exemplo, aqueles para quem a beleza é inconsolável pela sua própria efemeridade, e aqueles que se consolam exactamente através do sentimento da brevidade do belo). A conversa entre o entrevistador ( Wim Kayzer, tão acutilante quanto invisível) e o entrevistado ( cientista, filósofo, soprano, pintor, escritor - sempre uma pessoa contaminada pela obsessão da descoberta) corre sobre uma montagem delicada dessas imagens e do rosto mutante da pessoa que, falando, se expõe. Porque a indagação sobre a luz intermitente das aparências conduz-nos a essa zona de sombras e sangue a que chamamos alma. E desse projector íntimo - longe, muito longe da pompa arquitectónica dos Deuses e Demónios em que nos escudamos para não viver a vida - solta-se o filme deslumbrante da alegria. A alegria microscópica de descobrir uma partícula inédita do universo ou, apenas, o movimento da luz nas lágrimas.
Beleza e consolação
Texto de Manuel António Pina
Jornal de Notícias
19 Julho de 2006
Em tempos de, como Heidegger diz, ausência de pensamento, é reconfortante encontrar de súbito alguém, ainda por cima num meio especialmente vocacionado para a ausência de pensamento como a TV, a interrogar-se em voz alta e a falar de beleza, alegria, serenidade, amor, humor, a propósito de coisas perplexas e surpreendentes como partículas e leis físicas, vida e morte, o "Andante sostenuto" da sonata D 960 de Schubert por Radu Lupu e os "Corvos" de Van Gogh, biologia e neurologia, acaso e necessidade... E descobrir seres humanos como nós (Jane Goodall, Steven Weinberg, Ed Witten, Yehudi Menuhin, George Steiner, Ashkenazy, Coetzee, Appel, Stephen Jay Gould, Germaine Greer...), que, por momentos, nos devolvem a esperança: talvez afinal, quem sabe?, não sejamos inteiramente miseráveis. O programa chama-se "Of beauty and consólation" e passa a horas mortas na SIC, quando a Direcção de Programas não tem mais nada para pôr no ar, antes das Televendas e entre anúncios de cervejas, de toques de telemóveis e de astrólogos. Mas muitas grandes descobertas, como dizia ontem Leon Lederman, fazem-se "às três da manhã, e por acaso"... E (privilégios da insónia) as noites de alguns "happy few" tornam-se então melhores que os dias de quase toda a gente.
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