Por
José Saramago
Jornal de Letras, 26 de Novembro de 1985
Coisas boas em jornais
Fernando Pessoa e os seus heterónimos. Pintura de Costa Pinheiro (1978). Foto encontrada em pt.wikipedia.org
Naquele
jazigo do cemitério dos Prazeres, onde durante cinquenta anos os restos de Fernando
Pessoa foram esquecidos (agora os transportaram para o Mosteiro dos Jerónimos e
acomodaram em arca nova, perante uma plateia fúnebre de ministros e secretários
de Estado), havia, como é costume cristão, uma cruz. De mármore, ou outra pedra
calcária menos nobre, colocada a prumo sobre a fachada insignificante, o
conhecido símbolo derramava sobre o defunto bênçãos para o imediato e promessas
de eternidade. De quanto valham umas e outras não sou eu o competente
contabilista, nem seria esta a ocasião para se apurarem transcendências tais. Diga-mos,
no entanto, porque em algum ponto de doutrina terei de comprometer-me, que me incluo
entre os cépticos.
Fernando Pessoa, pintura de Júlio Pomar, 2007. Foto encontrada em wwwpoetanarquista.blogspot.pt
Ora,
a cruz desapareceu, já não está lá. Partiram-na ao rente do pé, deixando o
jazigo subitamente nu, com aquele ar friorento e sem jeito que têm os homens
quando lhes cortam o cabelo, ou as árvores quando são podadas. Não se sabe quem
foram os autores do atentado sacrílego, desconhecem-se as razões do
atrevimento. Mas a alma portuguesa, a mística alma, não pode deixar de
sentir-se confortada ante o acto magnífico de roubar-se uma cruz de
pedra só porque, durante meio século, ela velou o último sono de um poeta. Portugal,
afinal de contas, não está perdido, se filhos seus mantêm esta fé e praticam
esta coragem. Acredito que sobre a cruz e o furto possam vir a ser lançados os
alicerces de um culto novo, de que Fernando Pessoa seria, ao mesmo tempo,
profeta e livro. E também não me surpreenderia se me viessem dizer que a esta
mesma hora, numa qualquer cave de Lisboa, uma congregação de neófitos já vai
elaborando um rito e inventando orações, ou simplesmente adaptando os velhos
passes de mágica à nova esperança de redenção.
«Heterónimos de Fernando Pessoa». Pintura de Lívio de Morais. Foto encontrada em pessoasempre.blogspot.pt
Há
sempre um fundo de tristeza na ironia: a esta pouco lhe faltou para atingir a
lágrima. Claro que não cairei na banalidade de interrogar-me sobre se Portugal
merecia este poeta, como não pergunto se mereceu Camões. Mas torna-se cada vez
mais evidente o carácter redutor da relação que, preconcebidamente ou pela
obscura força das circunstâncias de tempo e de lugar, se está estabelecendo
entre os portugueses vivos que hoje somos e o poeta morto e trasladado, mais
emblema, ele, que homem, mais símbolo difuso que discurso coerente, mais pretexto
evasivo que afirmação peremptória.
É
possível que Fernando Pessoa tenha nisto grande responsabilidade. Homem de
máscaras que olham máscaras, é como se só máscaras o pudessem ler e porventura
compreender. Mas o que, sendo assim, produziria infalivelmente uma constelação
de sentidos, de significados, de leituras infinitamente abertas e nunca
conclusivas, veio, pelo contrário, a esbarrar com a tentação de definir um
Fernando Pessoa unificado, do qual, por mera ramificação sucessiva, tivessem
nascido heterónimos em qualquer momento reversíveis ao seu ponto de partida.
Trabalho vão, em meu entender. Cada um de nós é quem é, mas aquele que em nós
faz é outro. Fernando Pessoa soube-o melhor que ninguém, e os heterónimos, mais
do que «drama em gente», são, cada um deles, a expressão individualizante de um
conteúdo plural que se tornou singular no seu fazer-se, um ser que é diferente
porque diferente foi o fazer dele.
FERNANDO PESSOA: ele próprio e os "OUTROS". Foto encontrada em luardejaneiro.blogs.sapo.pt
Posta
a questão nestes termos, seria fascinante ler Ricardo Reis como Ricardo Reis, e
não como Fernando Pessoa. E o mesmo com Álvaro de Campos. Ou Alberto Caeiro. Ou
Bernardo Soares. E todos os esboçados e inacabados heterónimos como crianças ou
adolescentes que não puderam crescer, mas que eram já, no que foram, outros. E
finalmente duvidar que os poemas ortónimos tenham sido realmente escritos por
um Fernando Pessoa, tal como ele, com esse próprio nome, duvidou da sua
existência. Estaríamos, aí, em pleno campo da esquizofrenia (com ressalva do
emprego não de todo adequado da expressão), mas, correndo os riscos de quem
ousa um passo em terreno tão instável, poderíamos agora interrogar-nos sobre a
virtual maior produtividade duma leitura radiante, aceitando à letra aquilo que
teria sido a verificação final de
Fernando Pessoa: eu não sou eles. E talvez que «O Ano da Morte de Ricardo Reis»
seja, em mais de quatrocentas páginas de prosa, tão-somente uma leitura que
caminha ao longo de um raio, uma trajectória vital e poética a que nenhum outro
poema pode ser juntado, mas em que se admite como plausível uma vida outra, que
é mentira e por isso verdade outra, como a máscara é um rosto outro. Talvez
seja preciso escrever também sobre os anos da morte de Alberto Caeiro, de
Alvaro de Campos, de Bernardo Soares, para que sejam, cada um deles, cada vez
menos Fernando Pessoa, como Fernando Pessoa os quis.
Há
vertigem neste jogo. As máscaras olham-se sabendo-se máscaras. Usam um olhar
que não lhes pertence, e esse olhar, que vê, não se vê. Colocamos no rosto uma
máscara e somos outro aos olhos de quem nos olhe. Mas de súbito descobrimos,
aterrados, que, por trás da máscara que afinal não poderemos ser, não sabemos
quem somos. Está portanto por saber quem
é Fernando Pessoa.
José Saramago
Jornal de Letras, 26 de Novembro de 1985
Rui Pimentel, «Fernando Pessoa», 1989. Foto encontrada em www.apontamentosportugues.com
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