Um pequeno "retrato" da vida boemia em Lisboa nos 60 e 70
Texto de Margarida Bom de Sousa
Títulos, legendas e fotos copiados do
Expresso, Sábado, 27 Agosto 1983
Um pequeno "retrato" da vida boemia em Lisboa nos 60 e 70
Texto de Margarida Bom de Sousa
Títulos, legendas e fotos copiados do
Expresso, Sábado, 27 Agosto 1983
Coisas boas em jornais
Nos
últimos cinquenta anos Lisboa sofreu uma transformação radical nos seus hábitos,
na sua vivência e também na sua aparência externa: perdeu o seu carácter de
"aldeia à medida do homem" para se transformar num conjunto de várias
aldeias que aspiram, talvez em vão, a ser um dia cidade.
«Chiado: a vida de rua, dos cafés ou das noitadas é hoje apenas uma ténue recordação».
Foto Rui Ochôa, copiada do Expresso.
PARECE
inevitável — escreve David Mourão Ferreira no prefácio de um
livro intitulado "Saudades de
Lisboa" — não só da parte dos lisboetas mas também dos habitantes de
Lisboa, ao chegarem a certa idade, terem saudades da Lisboa que conheceram na
sua juventude, e de considerarem que a Lisboa em que vivem já na maturidade não
passa de uma triste degradação da outra".
"É
possível — acrescenta — que
haja aqui um erro de perspectiva pois, como disse um escritor belga —
Alexis Curvers —, ‘a beleza para
qualquer homem é aquilo que ele amou durante a mocidade’".
Contudo, é um facto que
Lisboa sofreu nos últimos cinquenta anos uma transformação radical nos seus
hábitos, na sua vivência e também na sua aparência externa. Perdeu o seu
carácter de cidade serena, imperturbável e silenciosa como em 1867 a definia
Eça de Queirós — para, no entanto, continua a não criar, a nada iniciar,
deixando-se ir ao sabor das correntes e do improviso, do "laissez faire,
laissez passer", colmatando aqui e ali as brechas que se foram abrindo,
indiferente à sua beleza, como uma mulher gorda que há muito deixou de se
preocupar consigo mesma.
E se muitos continuam a
amá-la, a gostar de viver nela e a defendê-la contra tudo e todos, o certo é
que, na intimidade, a criticam arduamente, nostálgicos de uma época passada que
teima em não regressar, esquecidos de que a mudança passa por cada um de nós.
A
Lisboa dos cafés
Uma das coisas que sem
dúvida alguma, mais se modificou em Lisboa nos últimos cinquenta anos foi a
forma das pessoas conviverem. A vida de rua, de cafés, de grandes noitadas em
casas de fados ou discotecas, restringiu-se, pouco a pouco, às reuniões em casa
de particulares, dando origem à formação de pequenos grupos fechados, que
deixaram de comunicar entre si.
Com efeito, nos anos 40
e 50 - e até mesmo muito antes disso, no princípio do século —, a
"educação" de um lisboeta não podia considerar--se completa sem que
tivesse transposto, ao menos algumas vezes, a porta de um café. Grande parte da
vida das pessoas passava-se nesses locais, que se agrupavam por
"especialidades": havia os cafés políticos, os literários, os boémios,
os desportivos, os tauromáquicos, e ainda outros, ilustres - sobretudo pela
"maledicência".
«Se muitos continuam a amar Lisboa, a gostar de viver nela e a defendê-la contra tudo e todos, o certo é que na intimidade, a criticam, nostálgicos de uma época há muito perdida».
Copiadas do Expresso.
Copiadas do Expresso.
"Era
até certo ponto o caso do café Portugal — conta David Mourão
Ferreira — onde se reuniam escritores
ligados ao movimento neo-realista e outros adversários da 'situação', e que
foi, numa dada altura, conhecido por Portugal a Cantar — designação de um espectáculo
célebre da época. Tratava-se de um modo bastante ameno de exprimir a existência
de um Portugal que fingia cantar mas que gemia, ou uivava, contra a situação
vigente".
"Outro
café também notório pela `maledicência' política
— continua o escritor — era, ao lado do
Portugal, a Brasileira do Rossio, essencialmente frequentada por republicanos e
democratas, ou seja, aquilo a que se chamava 'a gente do `reviralho'. Ali
ocorriam de vez em quando irrupções da PIDE (antes PVDE Polícia de Vigilância e
Defesa do Estado e, antes disso ainda, Polícia de Informação). Foi lá que
conheci, por exemplo, entre várias outras figuras pitorescas, um simpático
surdo-mudo que foi preso três vezes por ser boateiro: é que ele divulgava
efectivamente boatos de revoluções, de conspirações, de escândalos... através
de gestos! Muito expressivos, aliás".
A Leitaria do Chiado,
ao lado da Brasileira, foi também a
segunda casa de muitos lisboetas, sobretudo daqueles que passaram pela Escola
de Belas Artes.
João, que a começou a frequentar
assiduamente aos quinze anos, recorda os anos de 56 e 57 "quando começaram a aparecer os existencialistas, de longas
barbas, grandes camisolas e ar pensativo, causando grande impacto nos chamados
`burgueses' - os empregados das lojas, que os miravam como se fossem autênticos
bichos. Outra das coisas que gostava de observar na leitaria era a diversidade
de pessoas que a frequentava, desde os jovens, com os seus modos um tanto
especiais, aos homens que iam para as obras e paravam para tomar o pequeno-almoço,
aos advogados que tinham o cartório próximo ou, durante a tarde, às senhoras
que iam às compras".
"E
havia o Acácio — prossegue;
rindo um contínuo da Escola completamente doido que passou a frequentar a
Leitaria depois de se reformar e que a maior parte do dia estava calado,
mergulhado nos seus pensamentos. Mas, de vez em quando, lá quebrava o seu
mutismo, e punha-se assim a falar para o primeiro que lhe aparecesse à frente:
`Olha, pá! Tu põe-te a pau. Porque o Estado resolveu fazer duas estradas de
Setúbal a Nápoles, paralelas uma à outra, só que uma é toda de ferro e a outra
de chocolate. E olha - e o Acácio
apontava o dedo, ameaçador - morreu um coelhinho branco como tu, que ia num
espadalhão a uma alta velocidade, porque escorregou na estrada de chocolate. E
tu — virava-se para outro de nós —
podes passar ali pelo Poço do Bispo que há lá uma árvore que dá maços de Camel.
Já sabes, podes tirar um ou dois que os saloios não se importam. E também podes
tirar duzentos ou trezentos quilos, que eles às vezes dão, outras vendem'.
"Mas
ele falava com um ar tão sério que quem não o conhecia quase acreditava. E
quando era preciso interná-lo no Júlio de Matos? Bastava dizermos-lhe assim:
`Oh Acácio, é só para ires ali prestar umas declarações à Pide', que ele lá ia, feliz e contente, dentro da
ambulância."
Os
tempos do Vává
Fernando Lopes,
António-Pedro de Vasconcelos, Paulo Rocha, César Monteiro, Seixas Santos,
Manuel Costa e Silva, António Escudeiro — naquela época eram ainda um punhado
de idealistas que se reuniam diariamente à volta de uma mesa do Vává, lutando
por uma carreira que, se hoje é difícil, na altura era uma verdadeira loucura,
vivendo à base de pequenos expedientes e de algumas idas ao “prego”.
No seu gabinete da RTP,
na Cinco, de Outubro um gabinete austero onde apenas sobressaem alguns cartazes
de filmes como o da "Canção de Lisboa, primeiro filme feito por
portugueses" — Fernando Lopes fala, durante mais de duas horas, de um
tempo em que havia mais solidariedade entre as pessoas, em que as barreiras
sociais não eram tão evidentes, onde a comunicação se estabelecia com maior
facilidade.
"As
pessoas tendiam a reunir-se fora das suas casas e faziam-no; essencialmente,
por grupos de interesses. No que diz respeito ao cinema, já tinha havido nos
anos 40, um grande café, o Paladium, onde se reuniam os cineastas, técnicos e
autores de uma época que, em termos de filmes, se pode definir como a que vai
do `Pai Tirano' ao `Pátio das cantigas'. Depois, e durante os anos 50, houve
como que um desaparecimento da tertúlia de cinema, que se refez,
posteriormente, à volta do Parque Mayer, no Riba D'Ouro, numa tentativa de
conciliar gente de uma época anterior com gente mais nova que começava a
aparecer".
"Mais
tarde — continua enquanto acende um cigarro que parece
fazer parte integrante dele — acabámos
por ter o nosso próprio sítio, o Vává, que se encontrava numa posição
estratégica quer em relação aos laboratórios de cinema existentes (a Odisseia
Filmes e a Tóbis), quer em relação às nossas próprias casas".
«Lisboa, 1983, entre hábitos e paisagens diversas: indiferente à sua beleza». Copiada do Expresso.
Um café situado numa
nova Lisboa — a Avenida de Roma e Alvalade, zona onde começava a surgir uma
outra maneira de viver, mais livre e mais ousada — e pelo qual passavam,
igualmente, muitos estudantes da Universidade, nesses anos 60 um verdadeiro
foco de agitação política e cultural.
Assim, acabou por se
tornar num ponto de encontro de gente de cinema, da universidade e da música —
particularmente os defensores da nova música anglo-saxónica, como os Shadows, e
de intervenção, como Adriano Correia de Oliveira — entre a qual se estabeleceu
uma grande solidariedade, cimentada por uma resistência comum ao fascismo.
"Dado
que a sociedade não compartilhava as ideias destes grupos, —
prossegue Fernando Lopes — eles tiveram
de se defender, criando os seus próprios códigos e valores que, mais tarde,
acabaram por ter um certo sentido, penso que de liderança em relação à
mudança".
Com efeito, muitas das
pessoas que então frequentavam o Vává começavam a ser conhecidas publicamente. Medeiros
Ferreira, Jaime Gama, Alfredo Barroso e Jorge Sampaio, entre outros, faziam
também parte do grupo, "um grupo
que, ao manter um certo tipo de intervenção política e cultural, tendeu para a
abertura de novos espaços de convívio, revalorizando o que a moral
pequeno-burguesa transformara em qualquer coisa de pecaminoso: o gosto da festa
e do prazer”.
"Também
as relações afectivas e sexuais, se alteraram completamente a partir destes
locais — adianta Fernando Lopes — tornando-se muito mais
livres e muito menos hipócritas".
Mas a vida no Vává
caracterizava-se ainda por um outro aspecto relacionado directamente com a
própria subsistência dos seus frequentadores, e que consistia na existência de
uma "banca privada", em que o próprio dono do café participava,
através da qual os mais necessitados conseguiam chegar ao fim do mês, tornando
a vida relativamente mais fácil.
"Havia
também, e em última análise, uma instituição, fabulosa em Lisboa, que tende
cada vez mais a desaparecer, chamada `prego', e que fazia com que cada um de
nós pudesse pedir em casa, à tia, à avó ou à mãe, um relógio ou outra coisa
qualquer susceptível de se poder transformar em dinheiro, o qual, depois,
claro, era repartido por todos".
O
bichinho da boémia
"Eu
já trazia de Lourenço Marques o bichinho da boémia, onde todos os bons
espíritos se encontram".
Maluda, que pintava de
dia e vivia de noite, chegou a Lisboa em 59, com vinte e quatro anos de idade,
para imediatamente e "inevitavelmente", como ela diz com certo gozo,
cair na vida nocturna. Numa vida feita de personagens sistemáticos — os
errantes da noite — que se concentravam especialmente nas casas de fado,
nalguns bares e, esporadicamente, em "boites", como a Tágide ou o
Embaixador.
"Uma
das casas de fado que normalmente antecedia a concentração era a Adega da Lucília
do Carmo, onde actuava quase sempre o Alfredo Marceneiro. Do grupo faziam parte
o Zé Casimiro, o Zé Maria Santos, o Fernando Pinto Coelho, que muitas vezes
tocava guitarra, o visconde Passos de Nespereira, que só vivia de noite, o Raul
Solnado, o actual rei de Espanha, o Fernando Figueirinhas, o duque de Lafões, os
Sabrosas, o Manuel Gomes e o Sebastião Pombal, que por vezes preenchiam as
faltas dos guitarristas e isto para só falar de alguns. Outro dos locais
preferidos era a Toca, do Carlos Ramos, onde o António de Bragança e a Maria
Teresa de Noronha cantavam às vezes, e onde estavam quase sempre as tias, Tarouca
— D. Anica e mana Margarida — duas encantadoras velhinhas".
Um ambiente de boémia
que nascia ao cair do dia, no qual se encontravam os amantes da noite, do fado,
e da conversa em redor de uma mesa cheia de copos.
"Porque
estas coisas de que eu lhe falo — Maluda não fala, ri —
não aconteciam uma ou duas vezes por
semana, mas sim todos os dias, pela noite fora, até às seis e sete da manhã. Eram
madrugadas feitas de conversa e laracha onde eventualmente o fado acontecia,
como quando a Amélia começava a cantar, já depois das três da manhã, na Taberna
do Embuçado, do João Pereira Rosa, só para meia dúzia de amigos.
“E
antes de irmos tomar o pequeno-almoço à Ribeira ou a casa de um de nós, porque
àquela hora já apetecia tomar um café, ainda dávamos um pulo à Cova do Galo,
onde actuavam o Pepe e o Sivuca.
"Mais
tarde — recorda Maluda — e com características diferentes, surgiu o Botequim da Natália Correia,
com toda aquela `entourage' de poetas e gente ligada à literatura, com a Maria
Paula a cantar versos que faziam a caricatura, sempre actualizada, dos
acontecimentos políticos."
Contudo, a vida
nocturna não se limitava a estes locais. Abertos até tarde e muito mais
acessíveis, os cafés também faziam parte da noite, abrigando um outro tipo de
gente ao qual, a partir de uma certa hora, se juntavam os espectadores do
teatro de Revista ou do S. Carlos, ávidos de uma boa ceia. Havia mesmo alguns
cafés que só fechavam das cinco às seis da manhã "para limpeza deles e dos
clientes".
Mercado da Ribeira - Mercado 24 de Julho. 1936. Eduardo Portugal. Foto do Arquivo Fotográfico da CML.
O
fim dos cafés
A partir de certa
altura a manutenção dos grandes cafés — como era o caso do Chave de Ouro, no
Rossio, que ocupava a totalidade de um prédio de cinco andares — começou a
tornar-se insustentável. Por um lado, devido ao aumento das matérias-primas e
da mão-de-obra, bem como do valor económico dos próprios espaços em causa. Por
outro, devido ao desenvolvimento dessa onda de especulação desenfreada que
assolou Lisboa a partir dos finais dos anos 50, com a proliferação de bancos e
suas filiais, transformando aqueles cafés em alvos privilegiados para a
abertura de novas sedes e dependências bancárias.
"Aliás,
hoje
— constata David Mourão Ferreira — e
apesar da nacionalização da banca, devemos continuar a ser um dos países do
mundo em que tais `beneméritas' instituições ocupam, proporcionalmente, áreas
mais amplas e mais luxuosas. A não ser que as contínuas desvalorizações do
escudo exijam cada vez maiores espaços para armazenar cada vez maiores
quantidades de papel que não valem nada...”
Mas não foram os bancos
os únicos responsáveis pelo fim destas "instituições". A própria vida
das pessoas alterou-se profundamente, sobretudo depois da mudança de regime.
Divergências até aí imperceptíveis, pela existência de um inimigo comum bem
definido — o fascismo — começaram a surgir e, gradualmente, os grupos começaram
a desfazer-se. A faceta de praça pública que caracterizava a vida nos cafés,
fazendo com que as diferenças sociais quase não se notassem e proporcionando
simultaneamente um convívio fácil, mesmo entre desconhecidos, foi desaparecendo
para surgir no seu lugar um outro tipo de convivência social, mais voltado para
o interior das casas e compartilhado apenas por meia dúzia de amigos.
"Evidentemente
que agora, em 83, isso é muito mais sensível — considera por
seu turno Fernando Lopes — porque de
certa forma se está a sentir o refluxo de toda a actividade que ocorreu em
Portugal entre 74 e 76. E o que mais se nota é que existe muito menos
comunicação. Nesse aspecto estamos a ficar iguais a qualquer grande cidade em
que cada um vive na sua pequena ilha".
Todavia, Maluda observa
que já em 67 esta mudança de hábitos dos lisboetas se começava a fazer sentir:
"Quando
regressei definitivamente, depois de ter trabalhado em Paris
— lembra com uma ponta de tristeza na voz — toda a efervescência que caracterizava a vida boémia da cidade tinha
desaparecido. Uns atribuíam o facto a uma certa contracção devido à guerra
colonial. Outros à decadência das casas de fado que entretanto tinham aberto as
suas portas aos turistas, perdendo com isso qualidade, pois qualquer fadista
'ad-hoc' servia... O que certo é que qualquer coisa mudara. Hoje, existe uma
plêiade de gente que enche, de facto, as `boites' e os bares mas que parece
muito mais interessada em dançar e em encharcar-se em copos do que em
divertir-se como nós o fazíamos, à base da laracha, da caturrice, da graça, da
improvisação."
"Por
outro lado — continua — a
gente nova interessa-se agora por coisas que nada diziam à minha geração, como
sejam as exposições, os concertos... No fundo, acho que os novos de agora têm
uma vida interior mais rica do que a que nós tivemos, mas a sua forma de
participar nas coisas públicas é que me parece superficial em relação ao nosso
conceito de boémia. Como se os componentes da noite andassem dispersos..."
«Bairros antigos: as antigas comunidades de vizinhos têm sido desfeitas ao longo dos anos». Copiadas do Expresso.
E
a Lisboa de amanhã?
A coisa já não está no
segredo dos deuses. Grita-se na bicha do autocarro, discute-se durante os
almoços rápidos demais, murmura-se dentro dos partidos, canta-se na rádio. Isto
vai mal. Mesmo muito mal. Evidentemente que não é só em Lisboa, nem é só em
Portugal, o que deveria servir-nos de consolação. Mas não serve. Por outro
lado, ainda não conseguimos criar aquela indiferença necessária para suportar
estoicamente o facto de o nosso dinheiro cada vez valer menos, de ser mais
fácil encontrar uma agulha num palheiro que uma casa, de haver sempre alguém
com uma cunha maior que a nossa quando tentamos arranjar emprego, de perdermos
o avião porque uma cimenteira teimosa resolveu passar por uma rua demasiado
estreita, interrompendo o trânsito durante mais de uma hora. Pequenos
contratempos que fazem parte do quotidiano dos lisboetas.
Para já não falar da incógnita
que rodeia os abastecimentos à cidade, transformando cada ida ao supermercado num
milagre da substituição, o sumo em vez do leite, o mel pela manteiga, a massa
quando se pensou em batatas. Como também é reconfortante sentir a segurança com
que as pessoas se movem na rua, perfeitamente cientes de que à mínima tentativa
de assalto serão imediatamente socorridas por um agente ou, no mínimo, quando
este não se encontra por perto, pelos outros transeuntes. Ou ainda observar o
frenético vaivém dos reboques da PSP, ávidos de automóveis estacionados nas
paragens de autocarros onde estes aliás não param, sem todavia conseguirem
evitar os sucessivos discursos para disciplinar o trânsito.
"Tentando
ser objectivo — David Mourão Ferreira fala da Lisboa
actual pensando na outra, na que conheceu na sua juventude — creio que se tem verificado uma real
degradação de Lisboa, sob variadíssimos aspectos e a diferentíssimos níveis, a
qual tem a ver com um desenvolvimento, perfeitamente irracional do tecido urbano
e das próprias expressões arquitectónicas e também com uma pastosa
intensificação do trânsito que acaba por ser paralisante.
"Degradação
que tem igualmente a ver com a falta de cuidado que as entidades autárquicas
têm manifestado em criar algo de novo no espaço urbano de Lisboa e em conservar
o que devia ser conservado. E na chamada conservação do Património
— acrescenta — passa-se exactamente o
mesmo que se verifica no `conservadorismo' em políticas 'o que tem
arruinado os conservadores', disse-o
Paul Valéry, `é a má escolha das coisas a conservar'."
Esta degradação,
segundo o escritor, está também ligada à falta de uma profunda reforma das
mentalidades, acompanhada de uma não menos profunda reforma social:
"António
Sérgio chamou várias vezes a atenção para a necessidade de as duas reformas
irem de par uma com a outra. E claro que não basta que haja medidas de carácter
urbanístico, arquitectónico e social, até cultural no mais vasto sentido. É
necessário que isso seja, simultânea ou previamente, acompanhado da reforma das
mentalidades e que tal reforma se verifique nos estabelecimentos de ensino, nos
lares, nos meios de comunicação, nomeadamente nos meios audiovisuais. E
enquanto não houver essa reforma simultânea e de raiz, Lisboa, como todo o resto
do território português, a maior ou menor prazo, degradar-se-á irremediavelmente".
Um
caso exemplar
Mas, e enquanto não
surge a reforma, existe outro tipo de problemas, mais concretos, que parecem
preocupar grandemente os lisboetas. Um deles prende-se com o desenvolvimento
físico da cidade, com o seu crescimento desordenado, o que deve ou não ser
conservado, onde e como construir:
O Gabinete de Ordenamento
Urbano, criado durante o executivo de Aquilino Ribeiro, tinha exactamente como
objectivo apoiar a CML a resolver este tipo de problemas.
"Não
era propriamente um gabinete de planeamento — diz-nos a
arquitecta Luz Valente Pereira que participou no projecto — mas antes um gabinete de apoio técnico ao
executivo camarário para a resolução de problemas concretos que fossem surgindo
e que o referido executivo nos apresentava. No entanto, teve uma vida curta e
difícil, quer pelo desinteresse do próprio executivo que o criou, quer ainda pela
dificuldade de acesso à informação viva sobre a cidade, nomeadamente a que estava
de posse da própria Câmara. Isto para já não falar da desactualização
cartográfica e, de uma maneira geral, da má qualidade e incompatibilidade da
informação recolhida sobre a cidade nos diferentes serviços públicos.
Conseguimos, no entanto, fazer alguns trabalhos, como o da zona Ribeirinha ou da
Ameixoeira; que acabaram por não passar de simples opiniões num papel".
No entanto, outras
cidades europeias, nomeadamente Paris, debateram-se com problemas semelhantes
ao nosso e, ao que parece, conseguiram encontrar soluções satisfatórias. Também
do outro lado do Atlântico, em S. Francisco da Califórnia, cidade que muitos comparam
a Lisboa, se conseguiu conter o crescimento caótico da cidade.
"Uma
das coisas que mais me interessou ao estudar o planeamento daquela cidade
— prossegue Luz Valente Pereira — foi a
luta do município para criar meios de conservação da cidade e das suas
características, apesar de apostado no desenvolvimento, da existência da propriedade
privada do solo e da actuação de interesses especulativos de poderosos promotores.
A progressiva, mobilização do interesse da população na defesa da sua cidade,
considerada a mais bela `habitável' dos EUA, mobilização essa que o município nunca
deixou de promover, tem tido como consequência o apoio à aplicação da
legislação municipal para controlo da transformação da cidade pela própria
opinião pública. E é curioso verificar que as sentenças proferidas pelos tribunais
relativas a pleitos entre promotores e o município de S. Francisco têm sido
progressivamente favoráveis a este."
E planear e desenvolver
uma cidade não será exactamente isto? Ir de encontro, aos objectivos dos seus
habitantes, tornando a cidade agradável a todos de forma a que cada um a sinta
como algo de "familiar"?
"Ora
nós não sabemos — prossegue Luz Valente Pereira —, concreta e localizadamente, o que os
habitantes de cada bairro, de cada rua, consideram de interesse fazer ou não para
melhorarem as suas condições de vida. A discussão sobre ‘que cidade é e que cidade
deveria ser Lisboa’ não está feita, não se debate publicamente a cidade que
somos, o nosso futuro, e daí que nos sintamos todos, técnicos e não técnicos,
muito desamparados para ter uma opinião consistente sobre a cidade, para além dos
aspectos estruturais e dos grandes princípios organizativos e de conservação da
sua imagem.
"E
dramática a renovação que se processa na mira de lucros imediatos para alguns, escavacando,
lote a lote, edifícios de óptima construção e substituindo-os por outros de qualidade
muitas vezes inferior, cada qual de seu feitio. E, além deste aspecto, o facto
de os anteriores habitantes serem muitas vezes obrigados a irem viver para
zonas periféricas cada vez mais longínquas, desfazendo-se, assim, comunidades de
vizinhança existentes para, no seu lugar, surgirem vastas zonas de serviços que
vão sucessivamente estrangulando a cidade".
Lisboa, uma cidade cada
vez mais caótica, que, como David Mourão Ferreira diz, perdeu o seu carácter de
"aldeia, de aldeia grande, à medida
do homem" para se transformar num conjunto de várias aldeias à procura
da cidade que nunca foi, que ainda não é, que não sabemos se jamais será.
Texto de Margarida Bom de Sousa
Títulos, legendas e fotos copiados do
Expresso, Sábado, 27 Agosto 1983
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