«O "31 partes" mais Popular do meu tempo»
por
Dinis Machado
Se7e 26-10-78
«O "31 partes" mais Popular do meu tempo»
Coisas boas em jornais
O Imperador Ming cobiça a loira Dale Arden (companheira de Flash Gordon). Ming para Dale: ".. seus olhos, seu cabelo, sua pele ... Eu nunca vi ninguém como você antes ... você é linda .." Com Buster Crabbe como Flash Gordon, Jean Rogers como Dale Arden e Charles Middleton como Ming. Este serial foi selecionado para preservação no Arquivo Nacional de Cinema dos Estados Unidos. Aqui fica uma pequena amostra.
«Nos últimos meses, ao tentar arrumar prateleiras, grandes e pequenas, dos arquivos da aprendizagem, recuei tempo e escrevi em jornais homenagens menores a Raymond Chandler, Federico Fellini, Rent Goscinny, Charles Chaplin e Manuel Bandeira. Hoje, aqui onde me vêem e recuando para aí quarenta anos, tiro o chapéu que não uso a um dos mais antigos e jovens companheiros que nunca vi: Alex Raymond, inventor de Flash Gordon para papel impresso, depois peliculado na silhueta nervosa e na expressão decidida de Larry Buster Crabe, campeão das crianças pobres das cidades portuguesas nos anos 30-40. Mosqueteiro para retrato de família com Mandrake, Dick Tracy e Tarzan. Era a ofensiva cultural americana, a colonização organizada através da mais poderosa máquina de produzir passatempo. A maravilha súbita e exaltante. E o negócio.
Buster (Flash Gordon) Grable passou como um furacão por salas de cinema que começam agora a ter a sua história: o Olímpia, o Loreto, que era o do meu sítio (e que hoje é o Cine Camões), o Chantacler, ou o Galo, o Coliseu, o Arco Bandeira, o Salão Lisboa, também chamado o «Piolho», onde se guardava o lugar com o lenço atado no banco quando chegava o intervalo. Melhor: o segue imediatamente. O segue imediatamente, nessas salas, era o fim da bobina, a hora de beber o copo de água e comer o matacão. (Aqui, na Televisão, em vossas casas, o segue imediatamente é ocupado pela publicidade: sinal dos tempos). Mas eu estava a falar das salas de bairro, o cinema de bater com os pés, de avisar aos gritos que vinha lá o bera e de rir alto com o cómico que atirava o bolo de noiva à cara do parceiro que se baixava — e o que estava atrás é que apanhava com ele.
Os filmes mais compridos, aquilo a que se chama o serial, tardes imensas baptizadas em linguagem de rua de fitas de 31 partes, foram o cinema acrescentado ao cinema, a grande corrida ao oiro das quimeras. Lone Ranger, Dick Tracy, Fu Manchu e outros fizeram essa expedição das fitas enormes, onde a arte e a indústria respiravam muito bem a sua vocação e o seu espaço de multidões. O cinema, que sempre andou muito depressa para encontrar gente, escolheu o serial para encontrar mais gente ainda. Isto foi Hollywood, laboratório do dólar e, quase sem dar por isso muitas vezes, do talento.
Dr. Alexis Zarkov (Frank Shannon) e Flash Gordon (Buster Crabbe) no serial de 1936, “Flash Gordon”, Episódio 13, intitulado “Rocketing To Earth.”. Foto encontrada em www.cinemaisdope.com
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Flash Gordon, ou Buster Crabbe (aquele era o desenho, o outro era o actor, mas isso era igual) foi o trinta e uma partes mais popular e barulhento. Falava-se dele assim: tinha tudo. Este tudo era, mais ou menos: a narrativa dinâmica, o movimento calculado, a surpresa da encenação (eram filmes de grandes orçamentos), a técnica do suspense no fim do episódio (segundo o modelo da própria banda desenhada, do próprio Raymond), o espírito de evasão e de aventura, a gramática simplificada, o alvoroço de uma nova geografia. Era a gesta heróica e mesmo à mão por dez tostões (refiro-me, mais coisa menos coisa, ao preço do bilhete). E, como sempre, o cinema de actor. Buster Crabbe, herdeiro do mudo ainda com uma certa mímica caricatural, sem a gama de sentimentos que o rosto de Chaplin ou o de Stroheim, por exemplo, transmitiam, era um actor directo, de uma só proposta, ou de uma só leitura, mas que anunciava já a qualidade física e humana dos grandes actores sonoros, de que Bogart talvez tenha sido o paradigma. Buster Crabbe, que também foi Tarzan no cinema, e quase tão popular como Johnny Weissmuller, encontrou em Flash Gordon a roupa à sua medida, um estilo da época. Este Flash-Buster, visto hoje sem complacências e sem ternuras revivalistas, é o emblema da frescura que se perdeu, que o cinema perdeu e que nós vamos perdendo com o tempo, mas é também, e isto tem um valor incalculável, o museu que nos visita, tão depositado da pátine que se ganhou.
O Flash Gordon que começa hoje na Televisão — três filmes de 31 partes, com três episódios em cada sábado — é uma fonte de cinema, é uma estafeta do seu percurso, uma experiência e um projecto, uma página do seu inventário, e também da sua lição. E a TV, imagem da nossa intimidade quotidiana, é também ela, por dever cívico e razões de convivência, memória do cinema. Que traga, pois, outras memórias. Espectadores sofisticados que somos hoje, e alunos (avisados) do senhor Orson Welles, vamos lá atrás e temos nestas fitas a pose retocada do navegador estelar, como se o próprio Raymond tivesse desenhado isto com uma espécie de lápis mágico feito câmara. No genérico destes filmes, além dos nomes dos técnicos e dos actores, deviam estar Júlio Verne, H.G. Wells e outros loucos de ontem. E onde isto acaba já começaram Ray Bradbury, Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick, odisseias no espaço, solaris, guerra de estrelas e encontros imediatos. E também: este cinema americano misturado de contradições porque abre as portas ao sonho e visa alvos económicos, que semeia novas áreas de espectáculo e que se prepara como produto comercial, é um cinema de lances simultâneos: onírico, prático, generoso, mercantil. E é o futuro tacteado. Com Flash Gordon, com esta ingenuidade cósmica, cumpre-se, na data que está lá escrita, a saga espacial em embalagem popular, constrói-se a space-opera para muitos olhos e ouvidos, sobem ao céu, antes de terem realmente subido, as Soyuz e as Apollos de tão profundas ciências. Flash e companheiros contra Ming, o imperador, passando por cidades submarinas, cidades aéreas, lutando contra muitos inimigos e muitos perigos para que Mongo possa ser livre. E voltará à Terra, como decretou Alex Raymond, para a defender da ameaça nazi. Ele, o herói, e outros, anti-heróis. Mas isso é outra história. E outras séries. E agora: o foguetão imparável do cinema, o sonho imparável do homem, a sua tão esplêndida vontade de imaginar e de descobrir. Isto foi há quarenta anos.»
Buster Crabbe como Tarzan no filme, O Rei da Selva (King of the Jungle, 1933) de H. Bruce Humberstone e Max Marcin. Foto encontrada em sadburro.tumblr.com
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O Flash Gordon que começa hoje na Televisão — três filmes de 31 partes, com três episódios em cada sábado — é uma fonte de cinema, é uma estafeta do seu percurso, uma experiência e um projecto, uma página do seu inventário, e também da sua lição. E a TV, imagem da nossa intimidade quotidiana, é também ela, por dever cívico e razões de convivência, memória do cinema. Que traga, pois, outras memórias. Espectadores sofisticados que somos hoje, e alunos (avisados) do senhor Orson Welles, vamos lá atrás e temos nestas fitas a pose retocada do navegador estelar, como se o próprio Raymond tivesse desenhado isto com uma espécie de lápis mágico feito câmara. No genérico destes filmes, além dos nomes dos técnicos e dos actores, deviam estar Júlio Verne, H.G. Wells e outros loucos de ontem. E onde isto acaba já começaram Ray Bradbury, Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick, odisseias no espaço, solaris, guerra de estrelas e encontros imediatos. E também: este cinema americano misturado de contradições porque abre as portas ao sonho e visa alvos económicos, que semeia novas áreas de espectáculo e que se prepara como produto comercial, é um cinema de lances simultâneos: onírico, prático, generoso, mercantil. E é o futuro tacteado. Com Flash Gordon, com esta ingenuidade cósmica, cumpre-se, na data que está lá escrita, a saga espacial em embalagem popular, constrói-se a space-opera para muitos olhos e ouvidos, sobem ao céu, antes de terem realmente subido, as Soyuz e as Apollos de tão profundas ciências. Flash e companheiros contra Ming, o imperador, passando por cidades submarinas, cidades aéreas, lutando contra muitos inimigos e muitos perigos para que Mongo possa ser livre. E voltará à Terra, como decretou Alex Raymond, para a defender da ameaça nazi. Ele, o herói, e outros, anti-heróis. Mas isso é outra história. E outras séries. E agora: o foguetão imparável do cinema, o sonho imparável do homem, a sua tão esplêndida vontade de imaginar e de descobrir. Isto foi há quarenta anos.»
Dinis Machado
se7e 26-10-78
(Nota para Dinis Machado)
Por Rolo Duarte
«Nesta maratona dos dois «canais» apanhei-te mesmo à tabela: lá estavas tu, anfitrião na «casa» de Flash Gordon a fazer as apresentações aos mais novos — e a recordá-lo aos da nossa geração quarentona. Ao ouvir-te falar do «nosso herói» (ou de um dos heróis da época em que «nimas» eram todos os cinemas e não só o da Avenida 5 de Outubro...) imaginei-te, para não dizer que eu também «lá estava», nos bancos estofados a sumapau do velho «Loreto» (esse mesmo, o «piolho») que depois foi o «Salão Ideal» e que hoje é o «Cine-Camões», a «sofrer» as aventuras do «Flash Gordon» que voltei há pouco a «seguir» na b.d. do Alex Raymond editada em Espanha, seguramente com a mesma intenção (revivalista?) com que a «King Features» aceita reeditar os filmes da Universal que a RTP-2 «passa» às sextas. O «Loreto», onde «nasceste» cinéfilo é, para mim, que não sou de lá «natural», o símbolo de uma época que terminou ali, o «the end» das «31 partes» Com o bandido atrás da porta que nós próprios denunciávamos em voz alta e o «rapaz» de chapéu que desafiava as leis da gravidade... Digamos que fui, em meados dos anos 50, o Peter Bogdanovich do «Loreto» — e já vais saber porquê.
Foto (talvez dos anos 50), do interior do Cinema Ideal "O Loreto", vendo-se os lenços amarrados nos bancos para marcar o lugar. Foto copiada do jornal Se7e.
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É que na véspera da remodelação total da velha sala, onde anos antes pianistas bem pagos acompanhavam filmes mudos, estive no «Loreto» com o Pimentel para fazermos talvez a última (ia a dizer a única) reportagem de uma «última sessão» pública de um «piolho» dessa época. Exibia-se «O Filho da Selva» com o Sabú também nosso «conhecido» — e das várias fotografias que tenho agora aqui à mão escolho esta do «intervalo» porque são visíveis os lenços que marcavam os lugares, tal como recordaste no saboroso texto para a televisão que o «Se7e» reproduz hoje na íntegra.
Era o fim de um período importante na história dos velhos cinemas de Lisboa — da nossa própria «condição» de cinéfilos inveterados, quarenta e picos anos depois da «Chegada dos Operários à Gare de Lion» e do «Regador Regado» dos manos Lumière. Por isso, caro Dinis Machado, aqui te deixo a fotografia desse «intervalo» longínquo apenas para confirmar, numa imagem só, a evocação de sábado na TV-2. Realmente, nem fila A, nem fila B, nem os números que nos garantem hoje lugar certo... Em vez de tudo isso, um lenço...
Era o cinema da malta do teu bairro, era, nessa «última sessão», uma «fita» do Sabú — quem sabe se um daqueles lenços era teu...»se7e 26-10-78
Cartaz original do serial Flash Gordon, encontrado em 20thcenturytrash.blogspot.pt |
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