Outras Loiças

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Joshua Benoliel e a Ilustração Portugueza


Durante a Greve: O povo assaltando um carro eléctrico. 1912. Lisboa. Joshua Benoliel.


«O fotojornalismo português tem um pai e chama-se Joshua Benoliel. A obra deste pioneiro do jornalismo fotográfico é pouco divulgada e a sua importância nunca enquadrada historicamente de forma a dar-lhe a importância determinante que tem no nascimento de um fotojornalismo português. As suas fotografias são mostradas muitas vezes sem a indicação de que são de sua autoria, como se fossem documentos anónimos, de domínio público, sem autor. A obra de Benoliel está dispersa, muitas das suas chapas de vidro – o suporte com que ele trabalhou predominantemente – partiram-se, sumiram ou foram dadas como cacos inúteis.» 
Luiz Carvalho, foto-jornalista. In, Jornal de Letras 19-07-2005


A caminho do dever: Um adeus carinhoso. 1917. Lisboa. Joshua Benoliel.

Os emigrantes alentejanos: A chegada do vapor que os conduzia á ponte do Terreiro do Paço. 1911. Lisboa. Joshua Benoliel.

«Um fotojornalista não é um «bate-chapas». Isso é evidente em Benoliel. Ele fotografou os principais acontecimentos do seu tempo, mas além do conteúdo, as suas fotografias são esteticamente belas. É isso que aprecio muito na sua obra, sobretudo se pesarmos que na altura não havia máquinas digitais, nem automáticas, as películas eram muito lentas . Fico deslumbrado como é que ele – e outros, embora ele seja um expoente – conseguia fazer aquelas imagens espantosas.» 
Eduardo Gageiro, foto-jornalista. In, Jornal de Letras 19-07-2005

As cheias do Douro: Cais da Ribeira. 1910. Porto. Joshua Benoliel.

A caminho de França: Comprando fruta antes do embarque. 1917. Lisboa. Joshua Benoliel.

No Cais de Caminha: Desembarque de sargaço. 1913. Caminha. Joshua Benoliel.

Tropas portuguesas para França: Acariciando a filha antes de partir. 1917. Lisboa. Joshua Benoliel


«É, para mim, o maior repórter fotográfico do século passado. Benoliel era um homem de visão rápida e de grande sensibilidade artística. Além disso, viveu numa época em que só um fenómeno, um senhor, podia fazer aqueles instantâneos, grandes planos, panorâmicas, cenas de rua, revoluções... 
Fala-se muito dos grandes repórteres fotográficos, após os anos 50, como o Cartier-Bresson, o Frank Capa e outros grandes nomes da Magnum. Mas o Joshua Benoliel trabalhava em condições muito diferentes. Enquanto os fotógrafos depois dos anos 50, trabalhavam com Leicas, objectivas luminosas, sensibilidades rápidas, o Benoliel trabalhava com autênticos trambolhos de fole, pesando quilos, com chapas de vidro, muitas vezes emulsionadas por ele próprio e sensibilidades baixas aliadas a objectivas pouco luminosas. Com esses caixotes, esse homem movia-se por artes que hoje nos parecem mágicas, fotografando instantâneos que hoje nos parece impossível terem sido feitos naquelas condições.» 
João Ribeiro, foto-jornalista. In, Jornal de Letras 19-07-2005


De Espanha para Portugal: Galantaria de Português. 1911. Minho. Joshua Benoliel.

Expedicionários Portugueses: Escrevendo a um camarada uma carta para a família  1917. Lisboa. Joshua Benoliel.

Marinha de Guerra Portuguesa: Preparando um torpedo. 1916. Lisboa? Joshua Benoliel.

A partida para França: Uma despedida afectuosa. 1917. Lisboa. Joshua Benoliel.

Concurso Hipico das Caldas: Salto de sebe por um campino. 1910. Caldas da Rainha. Joshua Benoliel.


Duas capas da Revista Ilustração Portugueza:  O abraço de despedida. 1914. Local desconhecido. Joshua Benoliel. e Fazendo compras na feira. 1909. Local desconhecido. Joshua Benoliel.



ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA – Foi lançada pela Empresa do jornal O Século em Novembro  de 1903 e manteve-se até 1993. Uma longevidade mais aparente do que real, porque a partir de 1931 verifica-se apenas a edição de um ou dois números por ano, com poucas páginas, evidenciando o propósito exclusivo de manter a posse do título.
(...) Edição semanal, a  Ilustração Portuguesa tem na imagem a sua marca distintiva. O editorial de apresentação faz questão de vincar bem essa opção, sublinhando a importância do desenho que, «pelos tempos fora, reproduziu tudo». Entendida como um complemento d’ O Século, propunha-se utilizar essa linguagem universal para  dar a conhecer «o mais belo e o mais útil». A Ilustração Portuguesa seria o «álbum das grandes festas e dos casos triviais», na ideia de que essa informação seria de proveito «tanto aos homens de hoje como ás gerações vindouras»
(...) Entre os seus primeiros  desenhadores encontravam-se  Alberto Souza, Cândido, Carlos Pereira, Jorge Colaço; mas foi na segunda série, por via de colaboradores como  Almada Negreiros, Apeles Espanca, Bensaude,Bernardo Marques, Cottineli Telmo, Ferreira da Costa, Gaspar Teles, Jorge Barradas, Manuel Gustavo, Rocha Vieira, Start Carvalhais, que a Ilustração Portuguesa se fez catálogo de arte. O propósito  de informar por imagens  alcançou-se também com recurso à fotografia que, à rapidez de execução, acrescentava a nota da veracidade de tudo o que é captado pela lente de uma máquina, e o toque de modernidade. Num ápice, os desenhos são suplantados pelos clichés de Bobone, Camacho, João Correia dos Santos e V. Mello; e, iniciada a segunda série, de Augusto Teixeira, Benoliel, Delius, Félix, Frederico Braga, Garcez, Guedes d’Oliveira, João Magalhães Júnior,  Novaes, Photographia Sequeira & Roque, Salgado, Vasques, entre muitos outros; aos quais havia ainda que acrescentar as dezenas de amadores, de todo o país, que enviaram fotografias para a Ilustração Portuguesa, que as publicou, identificando os autores pelo nome e agradecendo a oferta; com igual ou maior interesse foram recebidas as fotos dos militares que participaram na I Grande Guerra. É um conjunto impressionante, não obstante a pequena dimensão de muitos registos e a sua fraca definição.  Foi certamente fundamental ou mesmo determinante para o sucesso da Ilustração Portuguesa. Não é difícil imaginar quão sedutora  terá sido,  mesmo entre os  iletrados, uma publicação que faz notícia do que acontece em todo o mundo, no país, isto é, nos grandes centros urbanos, mas também  nas vilas e aldeias  mais recônditas, oferecendo paisagens reconhecíveis, rostos familiares e até o  protagonismo de uma fotografia, um desenho ou uma história.
In, hemerotecadigital.cm-lisboa.pt


(Fotos copiadas de capas da Revista Ilustração Portugueza da Hemeroteca Digital da CML)


Os textos das fotos foram retirados das capas da revista Ilustração Portugueza



segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A GUERRA DOS APACHES

«...vi apodrecer muitos corpos humanos, mas nunca fui capaz de ver a parte a que se chama espírito; não sei o que seja; nunca fui capaz de perceber essa parte da religião cristã.» 
Jerónimo na sua auto biografia, citada por Manuel João Gomes, Jornal de Letras 25-08-1986


Coisas boas em jornais
Manuel Cintra Ferreira
Expresso, 27-05-1994

Jerónimo (Guiyatle), Apache. 1898. Frank A. Rinehart. Foto de commons.wikimedia.org


«OS PASSAGEIROS de um comboio que cruza o Novo México e o Arizona encontram no percurso uma pequena povoação de nome Jerónimo. É um dos muitos vestígios que, numa região bem conhecida dos cinéfilos por ser invariavelmente palco de «westerns», testemunham a presença do último povo guerreiro a enfrentar a máquina de guerra da jovem nação EUA, formada nos territórios dos americanos nativos (Chiricahua Mountains, Chiricahua Peak, Apache Pass, etc.), após a sua expulsão por levas sucessivas de emigrantes europeus.
Vindos do Norte, os povos que formaram as várias famílias de apaches (que a si próprios se chamavam «dineh», o povo, sendo o termo «apache» de criação espanhola, inspirado num vocábulo do dialecto zuni que significava inimigo) ocuparam há alguns milhares de anos uma região de fronteiras fluídas, que iam de parte do Arizona de hoje até ao Norte do México. O primeiro contacto com o «homem branco» fez-se com os «conquistadores» espanhóis, que buscavam as sete cidades de Cibola, o mítico El Dorado. Encontro pacífico e, de certo modo, proveitoso, na medida em que foram os espanhóis que trouxeram uma das suas bases de alimentação e indústria futura, os carneiros, além do cavalo. Se as relações rapidamente perderam o carácter pacífico, a norte do Rio Grande os conflitos geravam-se apenas com tribos inimigas, os kiowas, em especial, que na sua família incluíam também uma tribo de origem apache, adversária dos seus irmãos de língua do Sul.


Prisioneiros Apache, a caminho de Fort Marion, incluindo Jerónimo (primeira linha, terceiro da direita), sentados em um barranco fora do vagão de trem, perto de Nueces Rio, no Texas. 1886. Arizona. Foto de commons.wikimedia.org

Até meados do século XIX. Os apaches encontram os americanos pela primeira vez em 1848, aquando da guerra destes com o México. É chefe dos apaches mimbrenos Dasodahe, a quem os mexicanos deram o nome de Mangas Coloradas. O encontro é pacífico, pois aquela guerra nada tem a ver com os apaches. Pacífica é também a recepção de uma companhia de dragões americanos (soldados de infantaria) em 1856, que cruzavam o Arizona na sua expansão para o Pacífico. Cochise — que mais tarde dirá «quando eu era jovem andava por todo este território e nunca vi outro povo além dos apaches» — recebe os intrusos de forma cordial. A paz, porém, é breve. Atrás dos soldados vêm pioneiros e pesquisadores que ameaçam os índios que se aproximam dos seus acampamentos.
Em 1861, Cochise é atraído a uma emboscada para ser preso acusado falsamente de rapto de uma criança. Evade-se, mas os seus companheiros não têm tanta sorte. Começa então a primeira guerra apache, com Mangas Coloradas chefiando os seus, a que se juntam os chiricahuas de Cochise. O combate mais importante tem lugar em Apache Pass (a 15 de Julho de 1862), em que 300 soldados americanos caem numa emboscada. O Governo americano procura utilizar com estas aguerridas tribos a táctica aplicada com sucesso nas tribos das planícies: a força e a negociação para os colocar em reservas. Em 1863, Mangas Coloradas é assassinado na prisão (espicaçado com baionetas em brasa na prisão, Mangas é forçado a reagir, sendo de seguida abatido com quatro tiros na cabeça «por tentativa de evasão»). Cochise toma a liderança tendo como braço-direito um outro chefe famoso, Vittorio dos Mescaleros. Junta-se-lhes outro guerreiro chiricahua que irá dar que falar, Goyathlay, conhecido pelo nome espanhol de Jerónimo.


Grupo de Apaches a sul do Arizona, fotografados (antes de 1886) enquanto estavam sendo perseguidos por um terço do Exército dos EUA (20.000 homens) e mais 3.000 soldados mexicanos. Esta é a única fotografia existente de uma força americana nativa em luta contra o Exército dos EUA. Totalizando cerca de 39 homens, mulheres e crianças, este grupo de Apaches incluia Naiche, filho de Cochise (a cavalo) e Jerónimo (em pé na frente de Naiche).  Foto LIFE Archive.

Até 1872 os apaches resistem num território cada vez mais reduzido, explorando a seu favor a fronteira  com  o México (a Sierra Madre será em 1885 e 1886 o último refúgio de Jerónimo), Nesse  ano, Cochise rende-se graças aos esforços do general O.O. Howard e de Tom Jeffords, que tinha a confiança de Cochise. Se tal foi possível deve-se também ao impacte que teve na imprensa de Leste o massacre da reserva de Camp Grant, em Abril de 1871, quando a população de uma região próxima massacrou mais de uma centena de pacíficos apaches aravaipa que ali viviam da agricultura. O Presidente Grant quer ver o problema apache resolvido e envia para a região o general Crook. A táctica deste militar consistiu na busca de uma alternativa para a solução militar, com criação de reservas e tentativas de aproximação aos resistentes para negociações. A rendição de Cochise foi o primeiro resultado. Crook recorreu a outro método para esta aproximação e combate: o uso de apaches «assimilados». Estes revelar-se-ão úteis na campanha de 1873/4 contra os apaches tontos, dirigidos por Delshay, que terminou com a morte deste e a sua cabeça exposta à entrada da reserva.
Em 1875 a maior parte dos apaches estão encerrados em reservas, vivendo em condições precárias, apesar do esforço de brancos bem intencionados (Jeffords e John Clum, responsável pela reserva de San Carlos) e de apaches cansados de guerra, como Taza, um dos filhos de Cochise, que toma a chefia da tribo após a morte do pai em 1874. Taza não tem o carisma de Cochise e a reserva começa a agitar-se devido às dificuldades de vida. Em companhia de Jeffords, Taza vai a Washington interceder pelo seu povo junto do Presidente, mas morre de uma febre, levantando suspeitas no seu irmão Naiche. Em San Carlos, incapaz de impedir os atropelos às suas tentativas de auxílio aos índios, John Clum demite-se. A agitação aumenta e Vittorio evade-se com a tribo de White Spring.


A partir da esquerda: Yahnozah (irmão de Jerónimo), Chappo (filho de Jerónimo), Fun (segundo primo de Jerónimo) e Jerónimo, Tombstone, Arizona.  Foto tirada no acampamento antes da rendição ao general George Crook em 27 de marco de 1886. Foto encontrada em hem.passagen.se

De 1877 a 1880 decorre a nova «guerra apache», com Vittorio refugiado no México e lançando a partir daí mortíferos ataques-surpresa. A 14 de Outubro de 1880 tem lugar o massacre de 3 Castillos, desta vez a cargo dos mexicanos. Vittorio morre em combate ao lado de 78 apaches. Nana, outro dos chefes, consegue escapar com 30 sobreviventes, tomando a direcção da guerrilha. As suas operações provocam agitação nas reservas de White Mountain e San Carlos, da qual se evadem Jerónimo, Naiche e mais 70, que se refugiam na Sierra Madre. Em 1882, Jerónimo regressa a San Carlos e leva consigo outros apaches. Enquanto isso, os soldados mexicanos atacam o refúgio matando mulheres e crianças. Jerónimo com os seus junta-se a Nana. O general Crook, que entretanto fora enviado para combater os índios da planície, regressa em 1882 com ordens para acabar de vez o conflito. Crook consegue, ao fim de várias tentativas, chegar a Jerónimo, convencendo-o a render-se, na Canon de los Embudos. Jerónimo aceita desde que possam voltar a San Carlos e não irem para a Florida. Para sua surpresa, Crook aceita. Porém, o Governo não esteve pelos ajustes, e o compromisso de Crook não passou das palavras.
Inicia-se a última fase do drama apache. Descontentes com o resultado, mas também manipulados por comerciantes que procuravam um pretexto para correr com os índios, embriagando-os e lançando boatos, Jerónimo e Naiche fogem de Forte Bowie com 34 homens e uma centena de mulheres. Outro chefe, Chato, recusa-se a segui-lo, e será, mais tarde, um dos auxiliares do exército na última perseguição ao velho guerreiro. Outro será Alchise, um dos filhos de Cochise. A sua evasão leva o Governo a demitir Crook; substituindo-o pelo general Nelson Miles. Entre os fugitivos, há também dissenções: Jerónimo procura levar o seu povo para a Sierra Madre sem combates, o que provoca a separação de outro chefe, Chihuahua, cujos ataques na região serão atribuídos a Jerónimo.
Durante 1886, Miles vai utilizar forças incríveis para perseguir o pequeno bando: 42 companhias do exército americano, 500 batedores, milicianos e não regulares, para além dos mais modernos instrumentos de comunicação em uso, enquanto do outro lado da fronteira 4000 soldados mexicanos perseguem o mesmo objectivo. Mas, mais uma vez, será apenas através de enviados (o oficial Gatewood e dois apaches) que conseguirá chegar a Jerónimo.


Jerónimo e Naiche, (filho de Cochise, líder dos Apaches), a cavalo, ladeados por Chappo (filho de Jerónimo), à direita e um homem não identificado (segurando um bebê). 1881-1885. Local e fotógrafo desconhecidos. Foto de otrwjam.files.wordpress.com


Jerónimo rende-se a Gatewood na Sierra Madre e desta vez o seu destino será a Florida. Preso o último chefe segue-se a limpeza: todos os apaches, mesmo os colaboradores e os pacíficos aravaipas são enviados para os pântanos da Florida em 1886. Os velhos amigos dos apaches, Crook, John Clum e Hugh Scott desencadeiam uma campanha para ajuda. Agora que o perigo passara, os corações de Leste comovem-se. Os aravaipa regressam a San Carlos, enquanto velhos inimigos dos apaches, os kiowas e os comanches oferecem ao povo de Jerónimo parte da sua reserva em 1894.
Em Forte Still, em 1909, morre Jerónimo, já uma lenda, mas vivendo os últimos dias da venda de postais seus e de recordações aos turistas, deixando uma autobiografia escrita em colaboração com S.M. Barrett, e dedicada ao Presidente Theodore Roosevelt (apesar de inicialmente proibida pelo War Department), que se encontra editada em português pelas edições Antígona. Em 1912, o cinema apoderava-se da sua imagem com o filme Geronimo's Last Stand.
Em 1866 o Governo americano promulgara a lei dos Direitos Cívicos reconhecendo a igualdade de negros e brancos (em consequência da vitória do Norte). Aos americanos primitivos não foi sequer reconhecido o direito de existirem como cidadãos. A política do Departamento dos Índios só viria a ser alterada na década de 30 deste século. Até então, eram prisioneiros na sua terra. Durante a Primeira Guerra, os americanos primitivos que prestaram serviço militar voltaram como prisioneiros para as reservas após o conflito.»

Manuel Cintra Ferreira
Expresso, 27-05-1994

Como Jerónimo viu o Cinema


"Particularmente significativa é a  reacção de Jerónimo ao contacto com a civilização americana, depois de se ter rendido e submetido ao cativeiro. Os carcereiros levaram-no mais de uma vez a assistir e participar em manifestações mais ou menos espectaculares e artísticas, ao cinema, à exposição internacional de Saint-Louis, onde pôde vender, autografadas, fotografias suas, com o que ganhou muito dinheiro (2 dólares diários, no princípio do século, não era pouco). Aqui fica como ele viu o cinema:"  «Um dia fomos ver um outro espectáculo e, mal entrámos, fez-se noite. Era noite a sério, porque senti a humidade do ar; às tantas começou a trovejar e a relampejar. Os  relâmpagos eram verdadeiros, porque o estrondo era mesmo por cima das nossas cabeças. Protegi-me e quis fugir, mas não sabia como havia de sair dali.(...) Diante de nós apareceram então pessoas pequenas e estranhas; depois tornei a olhar para o ar e vi que as nuvens tinham desaparecido e que brilhavam já as estrelas. As pessoas pequenas pareciam levar pouco a sério o que faziam e eu fiz troça delas. Mas as pessoas que estavam ao meu lado pareciam fazer troça de mim.»
Jerónimo na sua auto biografia, citada por Manuel João Gomes, Jornal de Letras 25-08-1986

Os últimos guerreiros


Os Apaches, vistos por John Ford. Foto do filme Forte Apache (1948), encontrada em cockeyedcaravan.blogspot

«JUNTAMENTE com os índios das grandes planícies, em especial os Sioux e os Comanches, os Apaches são a presença mais frequente no cinema. Ainda antes do «western» se constituir como género, a figura do seu último chefe, Goyathlay (Jeronimo), seria objecto de uma abordagem em Geronimo’s Last Stand (1912). Contudo, a imagem que vemos raramente corresponde à realidade, pelo menos até há bem pouco tempo. Os seus intérpretes (secundários e figurantes) misturam mexicanos, brancos e índios de outras tribos (John Ford, por exemplo, usava os Navajos, tribo próxima, mas culturalmente diferente, para os Apaches de A Cavalgada Heróica e Forte Apache). Quanto aos intérpretes principais, quando a história o requeria, cabiam geralmente a actores brancos maquilhados, mesmo nos tempos em que começou a mudar o olhar sobre o americano primitivo, a década de 50: Jeff Chandler ou John Hodiak, como Cochise, Burt Lancaster em O Ultimo Apache, Jack Palance em O Apache Branco, Michael Pate, em Hondo, Rock Hudson (!) em Herança de Honra, mais tarde Chuck Connors no Geronimo de Arnald Laven e Charles Bronson como Chato em Desforra Apache. Mesmo o Geronimo de Walter Hill é interpretado por Wes Studi, um Cherokee. Foram, aliás, estes «biopics» que marcaram a revisão da imagem do Apache no cinema: Cochise aparece em três filmes (A Flecha Quebrada, Cochise, Gigantes da Planície), Jerónimo tivera já direito a «biopic» em 1938 (mas na faceta de «inimigo público»), Taza em Herança de Honra, Vittorio em Hondo, o agente dos índios John Clum, interpretado por Audie Murphy, em As Fronteiras do Orgulho.


A rendição dos Apaches por John Ford em Forte Apache (1948). Foto encontrada em www.doctormacro.com

De qualquer modo, a imagem do Apache percorre o cinema de Hollywood ao longo de dezenas de «westerns», na esmagadora maioria apresentados como irredutíveis selvagens. As excepções encontram-se a partir de 1950, mas o olhar sobre eles enferma de uma visão simplista, invertendo de súbito a situação: o guerreiro passa a vítima. Se a intenção é «boa», o resultado é o apagamento de uma das suas maiores qualidades: o arreigado amor liberdade e a luta implacável que levaram a cabo para a preservar. Esta visão «rousseauniana», que marca grande parte dos «westerns» dos anos 50 (de A Última Caçada a O Caçador de Indios) e se prolonga nas décadas seguintes (As Brancas Montanhas da Morte, O Pequeno Grande Homem), tem algumas surpreendentes excepções que resultam menos das intenções dos filmes do que da leitura que deles se faz: Forte Apache (1948), O Apache Branco e A Fuga de Forte Bravo ambos de 1953, Ulzana, o Perseguido (1972), podendo-se também ter em consideração O Ultimo Apache, de 1954. Os dois últimos, dirigidos por Robert Aldrich, colocam-se já fora do que se chamou «apacheria»: são resistentes individuais, sobre os quais é lançado o mesmo olhar que depois se deitou aos últimos pistoleiros. O Ultimo Apache fica viciado por um «happy-end» imposto pela companhia: Masai (Lancaster) é deixado em paz quando lhe nasce o filho. O argumento original terminava com o índio abatido pela patrulha que o perseguia. Ulzana, o Perseguido, é mais irredutível: Ulzana lança-se numa guerra privada para recuperar o filho capturado pelos brancos, e o argumento não procura justificações ou alibis humanistas.


Dustin Hofman em O Pequeno Grande Homem de Arthur Penn; um outro olhar sobre os índios. Foto encontrada em www.toutlecine

É também este o olhar de John Ford no filme que primeiro retratou o americano primitivo com dignidade: Forte Apache. Se a história do filme é outra, a presença dos Apaches é feita em traços fortes, expondo-se as razões que os levam para a luta sem tréguas, e dando-se-lhes a dignidade do guerreiro à altura dos seus inimigos.
O Apache Branco, dirigido por Charles Marquis Warren e A Fuga de Forte Bravo, de John Sturges, são verdadeiros choques quando hoje se vêem com um novo olhar (foram recentemente exibidos no pequeno ecrã). No primeiro não há conciliação possível entre as forças em presença: é uma guerra total. Se a posição do filme era (e é) extremamente racista, mostra, porém, que o índio, para combater o invasor da sua terra, precisa de conhecer os seus métodos e as suas armas: o chefe, interpretado por Jack Palance, vai para a escola dos brancos, não para assimilar a sua cultura, mas para possuir o saber para os combater. A acção de A Fuga de Forte Bravo decorre num forte do Arizona durante a guerra entre os Estados, o que significa que as operações de guerrilha dos Apaches são de Mangas Coloradas ou Cochise, revelando uma impecável estratégia de divisão e aniquilamento do pequeno grupo de brancos: cercados no deserto, é traçado à sua volta um círculo de lanças, que é a «mouche» para as nuvens de flechas rigorosamente disparadas das colinas próximas, indo a pouco e pouco abatendo os seus ocupantes. Nestes filmes clássicos, sem preocupações de rigor histórico, se encontra, no fim de contas, um maior respeito pelos últimos guerreiros que se opuseram aos americanos no interior do território dos EUA.»

Manuel Cintra Ferreira
Expresso,  27-05-1994


«Quando  Usen criou os apaches, criou também o território deles no oeste. Deu-lhes sementes, frutos e caça, porque eles precisavam de comer. Para se curarem quando a doença os afligia, fez crescer plantas diversas. Ensinou-lhes a encontrar estas ervas e o modo de as transformarem em remédios. Ofereceu-lhes um clima ameno e o necessário para se vestirem estava ao alcance das suas mãos. Assim era no princípio, os apaches e o seu território, este criado para aqueles pelo próprio Usen. Quando eles são arrancados do seu território, ficam fracos e morrem. Quanto tempo faltará para deixar de haver apaches?» (Jerónimo)


«Se fosse possível realizar este meu desejo, creio que seria capaz de esquecer todas as injustiças  que me fizeram na minha velhice e morreria feliz e contente.(...) Se em vida minha não se fizer o que peço, se tiver de morrer no cativeiro, desejo que se conceda aos sobreviventes da tribo apache, quando eu  desaparecer, o privilégio que eles pedem: o  regresso ao Arizona.» (Jerónimo)

«...fora do seu ambiente, em Fevereiro de 1909, Jerónimo morreria no cativeiro, sem ver cumpridos os seus últimos desejos: o regresso do seu povo, praticamente extinto, ao Arizona natal:  Não lhe fizeram nenhuma dessas vontades. A bem da democracia.» 


Manuel João Gomes, Jornal de Letras 25-08-1986





domingo, 28 de outubro de 2012

Mais fotos da Quinta da Calçada

Fotos (8) do Bairro da Quinta da Calçada e uma da Lagoa do Lima,  em Palma de Cima, encontradas no Arquivo da Torre do Tombo.


Não sei muito bem onde era esta lagoa, creio que ficava perto da Fábrica de Tijolo de Palma de Cima. Talvez ficasse perto do campo do Palmense, mas não tenho a certeza. Segundo o meu cunhado Carlos, na Quinta das Fonsecas, havia duas lagoas; a lagoa do Padeiro e a lagoa do Carvalho. Das minhas memórias só me recordo de uma lagoa (não sei o nome), mas era possível haver várias até porque, naquelas zonas havia várias Fábrica de Tijolo (olarias)  que vinham já desde 1900/1910.

Legenda da foto: A Lagoa do Lima em Palma de Cima, onde se deu mais um caso fatal, quando nela tomava banho o servente de pedreiro José Alberto. 1938.


As legendas da fotos abaixo dizem: «Aspecto dos trabalhos do Bairro Económico na Quinta da Calçada, em Telheiras, que a Câmara mandou construir para os habitantes do Bairro das Minhocas». Tratava-se do inicio da construção do Bairro da Quinta da Calçada, que começou junto do Largo das Fonsecas. Esta parte do Bairro que se vê nas fotos, seria mandada abaixo anos depois, para construção da pista de atletismo do Estádio Universitário. O Bairro da Quinta da Calçada, começava no local onde hoje está o pavilhão do Estádio Universitário, mais coisa menos coisa.


Inicio da construção do Bairro da Quinta da Calçada. Marcação do terreno. Agosto de 1938.

Inicio da construção do Bairro da Quinta da Calçada. Marcação do terreno. Agosto de 1938.

Bairro da Quinta da Calçada. Construção das bases e do "esqueleto" em madeira. Agosto de 1938.

Bairro da Quinta da Calçada. Construção das bases e do "esqueleto" em madeira. Agosto de 1938.

Bairro da Quinta da Calçada. Construção do "esqueleto" em madeira. Agosto de 1938.

Existe uma foto igual à anterior no Arquivo Fotográfico da CML, que está atribuída a Eduardo Portugal, portanto, é possível que também as outras sejam da sua autoria. 

Bairro da Quinta da Calçada. Construção do "esqueleto" em madeira. Agosto de 1938.

Bairro da Quinta da Calçada. Colocação das paredes e telhado em madeira. Agosto de 1938 .

Bairro da Quinta da Calçada. Colocação de paredes, janelas e portas. Agosto de 1938


Em 1940, o Bairro da Quinta da Calçada era assim, ainda não estavam prontas; as Escolas, a Igreja, o Centro Social, o Mercado etc. Anos depois (não consegui saber a data certa mas, deve ter sido no inicio dos anos 60), toda a zona marcada a vermelho foi deitada abaixo (que é a mesma das fotos anteriores), para construção da pista de atletismo do Estádio Universitário. A maioria dessas famílias foram alojadas no Bairro Padre Cruz e foi nesta deslocação de pessoas que o Clube que existia no Bairro da Quinta da Calçada: O Clube Futebol Os Unidos, acompanhou também essas pessoas. Não consegui saber as razões, mas deve ter tido a ver com o facto de os seus dirigentes na altura, fazerem parte dessa leva de pessoas que foi para Bairro Padre Cruz. 




(fotos do Arquivo da Torre do Tombo - digitarq.dgarq.gov.pt)



sábado, 27 de outubro de 2012

Europa Não! Portugal Nunca!

Mário Viegas 


Ao fim de um ano, em 1995, a SIC "descobriu", que havia um candidato há Presidência e foi à sala da Companhia Teatral do Chiado. Mário Viegas estava em cena com Europa Não! Portugal Nunca!, que estreou em 1994. Versão completa sem legendas. PARA OUVIR ALTO!


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

"A maneira melhor de ser fadista"

Alfredo Marceneiro

por
Vítor Pavão dos Santos


As luzes apagam-se para o fado.


«a minha oficina chama-se Marcenaria & Fado. Eu faço fados em pau santo, em nogueira, em castanho, em mogno e em pinho. Os de pinho são os mais populares, os de maior agrado!»
 Alfredo Marceneiro



Coisas boas em jornais

«O cenário é uma taberna, ao fundo uma barregã» — dizia ele, naquela sua voz rouca, para começar a criar clima. Depois, dava uns passos, mãos nos bolsos, quase a dançar, e ia tomando cena, até que parava, deitava a cabeça para trás, fazendo sobressair a melena sempre muito negra, e começava a cantar.


Falamos de Fado: Alfredo Marceneiro "Antologia"

Acontecia isto noite alta, em alguma casa de fados já fechada ao público, quando o Alfredo Marceneiro resolvia revelar, a uma meia dúzia de eleitos, como é que se cantava o fado, o fado que, em grande parte, foi ele quem o inventou. Algumas vezes tive o privilégio de estar entre esses eleitos, ora no «Mesquita», ora no «Machado», ora no «Faia» ou na «Viela», nem sei já quando foi a primeira vez. Mas o que sei, isso sim, é que era uma experiência tremenda, arrebatadora, que valia como uma  verdadeira iniciação.
É que, através daquela voz velada, um tanto ondulante, sem efeitos, que apenas marcava cada palavra para construir um ambiente musical, transmitia-se muito mais do que cantigas, ou fados, transmitia-se toda uma moral e um conceito de vida, transmitia-se oralmente toda uma cultura.
Se as situações cantadas, em palavras por vezes difíceis, iam do melodrama ao jocoso, tanto fazia, pois tinham sempre, naquela voz, uma força a que ninguém podia ficar indiferente.



O leilão da casa da Mariquinhas - Linhares Barbosa / Popular - Fado Mouraria


Alfredo Marceneiro, toda a vida

É que os poetas que ele cantava, os seus poetas, também tinham vindo quase todos do proletariado urbano, por isso sentiam e sofriam aquelas palavras, como ele as sentia e sofria.
Poetas do fado tão esquecidos, mas que não podem deixar de ser lembrados, a começar por Henrique Rego, tipógrafo, seu grande amigo e poeta preferido, que para o Marceneiro escreveu a história da «impúdica bacante» que descobre, assombrada, que o jovem pintor que tenta seduzir é, afinal, o seu filho. E quando o Marceneiro nos contava que «a turba comovida / pasma ante aquele quadro original, estranho», sentia-se «a piedade e o medo», tal qual o mesmo arrepio da tragédia, na revelação de que Edipo é filho de Jocasta. Enfim, a grande tradição da cultura.


Casa de Fado na Rua da Amendoeira em Lisboa, por volta de 1900. Foto da net.


Aos desmandos da cidade liberal e corruptora, opunha tipicamente o mesmo Henrique Rego o valor puro da vida campestre, simbolizados naquela «Menina, lá do mirante / toda vestida de cassa», ou então concentrava amor e raiva transbordantes num objecto: «O lenço que me ofertaste / tinha um coração no meio / quando ao nosso amor faltaste / eu fui-me ao lenço e rasguei-o»; ou era capaz de atingir o quase puro folclore, em «Toma lá colchetes de oiro». E tudo isto o Marceneiro fazia chegar até nós, intacto, no poder da sua voz tão vibrante, tão estranhamente entrecurtada.
E depois havia também o poeta Linhares Barbosa, grande malabarista das palavras, ora contando a história da perdição citadina da filha de um moleiro, em «Eu lembro-me de ti, chamavas-te Saudade», ora dando-nos um calafrio no Natal do criminoso. «Batem - me à porta, quem é? / ninguém responde... que medo...»
Muitos foram os poetas que escreveram para o Marceneiro e ele mantinha vivos, mas é de lembrar ainda Gabriel de Oliveira, o Gabriel Marujo, que Fernando Pessoa e António Botto «ousaram» incluir numa antologia poética, todo cheio de misticismo, velado e misterioso, na Senhora do Monte, ou mais colorido no célebre Há festa na Mouraria.


Fado amador no restaurante Ferro de Engomar, na estrada de Benfica. Por volta de 1930. Foto Arquivo Fotográfico da CML.


E isto sem esquecer, claro, o verso fácil, sorridente e um tanto revisteiro de Silva Tavares, contrariando as regras da moral estabelecida, ao cantar as alegrias da Casa da Mariquinhas, que teve tal sucesso que até mereceu continuação, no Leilão da Mariquinhas, de Linhares Barbosa, e cuja fama tanto perdurou que Alberto Janes, cheio de graça e invenção, muitos anos depois, a transformou em casa de penhores e em símbolo de uma época e de uma moral fadista que findava, em Vou dar de beber à dor, que, na voz de Amália, foi aquele êxito louco que se sabe.
Mas não se pense que Alfredo Marceneiro era apenas um grande intérprete, um contador admirável de histórias, pois ele era também e sobretudo um músico excelente, inventando para cada fado a melodia certa, tão certa que, por vezes, nem se dava por ela, e algumas são de uma beleza incrível. E reparar.
E é bem significativo que Amália Rodrigues, num dos seus discos melhores e mais elaborados (para mim o melhor), onde pela primeira vez aparecem as músicas de Alain Oulman, tenha escolhido, para cantar os seus próprios versos, célebre Estranha forma de vida, uma  velha melodia do Marceneiro.
— «Aquilo nem é um fado, é uma valsazinha que eu fiz há uma  data de anos e se lembraram agora de ir buscar» — ouvi eu dizer ao Alfredo Marceneiro, nessa altura, sempre irónico mas não sem uma ponta de orgulho.


Alfredo Marceneiro cantando na Adega Machado no Bairro Alto em 1961, acompanhado à viola por Armando Machado? e noticia de uma sessão de fados com Alfredo Marceneiro e Vicente da Câmara, acompanhados pela guitarra de Carlos Paredes, para os bailarinos Margot Fonteyn e Nureyev, no Grémio Literário em 1968. Foto da net.


Para cantar o fado até à morte

E já agora, sempre digo que ouvir o Alfredo Marceneiro conversar, teorizar sobre o fado, era quase tão bom como ouvi-lo cantar. E as coisas que se aprendiam; era toda a história do fado, que com a sua história afinal se confunde.
Nessas recordações, nunca saudosistas, sempre incisivas e críticas, muito críticas mesmo, passava-se pelo tempo em que o fado era cantado em cafés e acompanhado ao piano, «como devia de ser, que a guitarra só se usava para cantar o fado na rua, depois é que tudo isso se mudou»; passava-se pelo tempo em que cantar o fado não era profissão, e cada cantador — os cultivadores, como então se lhes chamava — juntava orgulhosamente ao seu nome a indicação do seu ofício honrado, tal como ele tinha sido, durante muitos anos, fadista sem deixar de ser marceneiro, e dos bons, operário que até entrara na greve do Alfeite. Lá se diz, na sua célebre marcha, que vale como um programa de vida: «Sou Marceneiro sim, porque trabalho / Marceneiro do fado e no ofício.»
E falava-se também na decisiva Festa do Fado, organizada por António Botto, no São Luiz, em 1924, primeiro passo para a dignificação dos fadistas, que depois se puderam profissionalizar, como «artistas de variedades», classificação que nunca lhes agradou lá muito.


Anúncios da presença de Alfredo Marceneiro em Casas Típicas em 1946 e 1956.

E era inevitável virem á baila aqueles sítios míticos, onde o fado se foi forjando: o «Perna de Pau», o «Ferro de Engomar». Ainda fora de portas, lá para as hortas arrabaldinas; o «Solar da Alegria», o «Luso da Avenida», o «Salão Artístico», da grande guitarra Armandinho, já no Parque Mayer; o «Café Mondego», o «Retiro da Severa», onde um dia se estreou a Amália, sem esquecer o «Solar do Marceneiro», ali à Calçada de Carriche, de vida breve, pois cantar a horas certas e sempre no mesmo sítio, nunca foi do seu agrado, nem mesmo em casa própria.
Foi tudo isto há muitos anos. Mas quanto a essas verdadeiras lições de cultura popular que o Alfredo Marceneiro dava, quando estava para aí voltado, não acredito que quem as tenha ouvido, possa esquecê-las.
Depois dessas noites mágicas, quando a madrugada já ameaçava, e todos se iam deitar, ele ajeitava o lenço de seda ao pescoço, e lá entrava ainda por aquela réstea de noite, sempre fugidio, indo geralmente até ao Ritz  Club,  para fazer  barba. Talvez para começar bem o dia. Talvez para acabar bem a noite. É que isto de tempo certo e horas marcadas não era com o Marceneiro. O seu tempo construía-o ele, como muito bem entendia. Tal como a vida. Tal como o fado.

Vítor Pavão dos Santos
O Jornal 8-7-1982



Anuncio do Solar do Marceneiro, no final da década de 1940, Solar este que pertencia a Alfredo Marceneiro e outro anuncio em 1950 de um restaurante naquela zona, com direção artística de Alfredo Marceneiro, talvez fosse o mesmo?.



Alfredo Marceneiro canta o Bêbado Pintor, Letra de Henrique Rego e Música de Alfredo Marceneiro - Alexandrino da Laranjeira: Para a Manuela de Freitas.



Morreu de cansaço e tristeza
por
Fernando Dacosta

O mundo exterior foi-se-lhe fechando devagar. Quando o percebeu sentiu-se cansado e triste. Sentou-se em casa, casa de páteo aldeão, deixou de cantar, de sorrir e de comer.

Aos 91 anos recusou, ele que sempre a amara, a vida. Não sofria de nada: corpo, coração, pulmões, rins, estavam bons. Apenas a vista se afundava. Morreu no amanhecer do último sábado, de cansaço, de tristeza — de velhice. Desinteressou-se, revelam os amigos, de continuar. A sua velha cidade transformara-se. As pessoas, as casas, as noites, os sentimentos tornaram-se outros — e tornaram-no alheio. A ele, fadista de génio e de orgulho, símbolo de um povo húmido e triste e ensombrado.


Alfredo Marceneiro e Herminia Silva em 1970. Foto copiada de jornal.


«Começou a entristecer, a entristecer (palavras de Mascarenhas Barreto) até que... De há oito anos para cá a vida nocturna de Lisboa, que era a sua, alterou-se radicalmente. Os velhos motoristas de praça, os velhos porteiros e empregados de mesa foram substituídos por gente nova que não o conhecia. Isso magoava-o muito. Por vezes não o deixavam entrar nas casas de fados, não o acarinhavam, e ele sempre foi tratado nas palminhas das mãos. Os taxistas paravam quando o viam e levavam-no muitas vezes de borla, toda a gente o chamava pelo nome, lhe oferecia a mesa, o ajudava, quando aparecia tudo mudava à sua volta, ofereciam-lhe dinheiro. Às vezes cantava, mas só cantava quando lhe apetecia. Recusou contratos, recusou filmes, recusou ofertas valiosas. Eu ia buscá-lo muitas vezes com outros amigos. Deixou de trabalhar muito cedo devido a um acidente numa mão. Vivia de uma reforma, com modéstia, mas com dignidade, passava os dias a descansar e só saía à noite pois tinha medo dos automóveis. O trânsito aterrorizava-o!»


A Viela, Letra de Guilherme Pereira da Rosa e Música Alfredo Marceneiro (Fado Cravo)


Fado feito de pinho...

Alfredo Marceneiro é uma memória de Lisboa, como as fragatas do rio, os bicos de gás, o cacau da Ribeira, onde várias vezes o vimos no raiar da manhã, memória terna e secreta feita, há muito, imaginário colectivo.
Nele, o fado é  um edifício sem tempo, um  Jerónimos  de afectividade, um vinho de penares, um altar de exorcismos. «A culpa foi do Júlio Dantas ao escrever «A Severa». O êxito foi tanto que o fado começou a entrar (evoca-nos Luís Oliveira Guimarães) nos salões e a levar os fidalgos às casas típicas. Ele é que arranjou essa trapalhada... Mais tarde o turismo tomou conta de tudo. Ora o Marceneiro ficou como era, só cantando quando queria. Ele dizia-me: a minha oficina chama-se Marcenaria & Fado. Eu faço fados em pau santo, em nogueira, em castanho, em mogno e em pinho. Os de pinho são os mais populares, os de maior agrado!»


Nesta foto estão três do nossos maiores fadistas de sempre: Alfredo Marceneiro, Lucília do Carmo, (mãe de Carlos do Carmo) e Maria Teresa de Noronha, na casa de fados O Faia. Foto da net, sem data mas com a indicação: nos anos 60.


«Foram sectários com ele»

Envolto no seu universo, o velho fadista vagabundeou, livre e sábio, pelos anos, pela música, pela amizade, pelo orgulho de se saber resistente.
«Sim, resistente. Era um cantor da resistência (sublinha-nos Luís Cília) como um Gardel. Nunca se dobrou àquilo que o fascismo fez do fado. O Marceneiro era, em termos culturais, um cantor revolucionário porque verdadeiro, de raiz. Podia ter sido um tipo riquíssimo mas recusou, não cedeu. E era-lhe muito fácil entrar no sistema! Só tenho pena que não tenham sido os progressistas a pôr-lhe a medalha de Lisboa em vez do Abecassis. Mas os progressistas foram um bocado sectários com ele. Ele que tinha uma coisa cada vez mais rara: a autenticidade. Comovo-me muito ao ouvi-lo... o Ferré, quando cá esteve, gostou imenso de o ouvir, ficou muito impressionado. Que pena não ter sido aproveitado de outra maneira, mas os mentores da nossa cultura, que se calhar até têm muito pouca cultura, não se aperceberam do seu valor cultural!»


Alfredo Marceneiro, Amália e o marido em foto sem data copiada de jornal.


O fado também é protesto

Em entrevista antiga, Ti Alfredo desabafava: «Cá para mim o fado hoje não passa de uma fonte de receita turística... fado hoje é para inglês ouvir. Fado, canção do povo e para o povo? Não me façam rir! Onde está o povo que hoje em dia pode dar 500 escudos para ir às casas típicas?» O fado «também é uma canção de protesto, ou de denúncia!»
Singularíssimo o seu funeral foi caminhado ao som de guitarras, de vozes de fadistas, de palmas e de sinos. Pelas ruas fora, numa tarde sufocada de domingo e de emoção, até ao cemitério, amável, dos Prazeres.
Amália entoaria com outros «A Casa da Mariquinhas». «O fado — disse — morreu hoje». «Com lídima expressão e voz sentida/ Hei-de cumprir no mundo a minha sorte/ Alfredo Marceneiro toda a vida/ Para cantar o fado até à morte.»
Até à morte.

Fernando Dacosta
O Jornal 8-7-1982


Letra de Armando Neves e Música de Alfredo Marceneiro (Fado CUF).


"O MARCENEIRO"


Com lídima expressão e voz sentida
Hei-de cumprir no Mundo a minha sorte
Alfredo Marceneiro toda a vida
Para cantar o fado até à morte.


Orgulho-me de ser em toda a parte
Português e fadista verdadeiro,
Eu que me chamo Alfredo, mas Duarte
Sou para toda a gente o Marceneiro.


Este apelido em mim, que pouco valho,
Da minha honestidade é forte indício.
Sou Marceneiro, sim, porque trabalho,
Marceneiro no fado e no ofício.


Ao fado consagrei a vida inteira
E há muito, por direito de conquista.
Sou fadista, mas à minha maneira,
À maneira melhor de ser fadista.


E se alguém duvidar crave uma espada
Sem dó numa guitarra para crer,
A alma da guitarra mutilada
Dentro da minha alma há-de gemer