Outras Loiças

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

5 de Outubro de 1910

A Revista à portuguesa, a liberdade no palco
por
Vítor Pavão dos Santos
Jornal Se7e 04-10-1978

Coisas boas em jornais

Nascimento Fernandes e Carlos Leal, os compadres de «Agulha em Palheiro», observam os padrecas expulsos, na Praça dos Restauradores.



«O 5 de Outubro de 1910 também para a revista foi uma grande data, pois restituiu-lhe a liberdade de criticar tudo e todos, livrando-a, por largos anos, da sua mais feroz e constante inimiga: a censura.
E porque o teatro de revista contava então com artistas e autores de grande talento, essa liberdade foi aproveitada para criar uma série de espectáculos memoráveis, que fizeram da década de 10 talvez a mais brilhante de toda a já longa história da revista à portuguesa.


Nascimento Fernandes, o actor de revista mais popular da década de 10, e André Brun, autor de revistas e comédias de grande sucesso, em desenhos de Amarelhe.



«Apoteoses à «portuguesa»

Passada a apertada ditadura de João Franco, que terminou em sangue em 1908, com o assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro, durante o reinado breve de Manuel II conheceu-se um abrandamento da censura. Contudo, apesar de então se registarem alguns êxitos de estalo, o lápis azul ainda riscava que se fartava, banindo os acontecimentos políticos mas fechando os olhos à pornografia, estado de coisas que os críticos do tempo não se atemorizavam nunca de denunciar nos seus jornais.
Na noite em que havia de rebentar a revolução republicana funcionavam em Lisboa seis teatros e doze animatógrafos, além, claro está, do Coliseu dos Recreios, onde The Nicoleto's, fantasistas sobre aeroplano, causavam sensação.
Quanto a revistas, no Music-Hall, das 8 à meia-noite, entre variedades várias, o espectador podia saborear De olho alerta, com o aplaudido quadro «Na tasca dos Tesos», enquanto no Teatro Salão Fantástico se representava. É Fantástico. Portanto, apenas duas revistas e das mais modestas.
Depois, estalou a revolução, houve tiros em barda, ferveu a bordoada, a família real pôs-se ao fresco e eis Portugal transformado, a par da França e da Suíça, em mais uma República da Europa. Passada pois a primeira agitação, os teatros começaram a ir abrindo. Logo no dia 11 de Outubro reapareceu É Fantástico, toda orgulhosa de ser a única revista em cena, e anunciando uma nova apoteose: «A República Portuguesa».
A 12, foi a vez do velho Teatro das Variedades reabrir as suas portas, oferecendo uma nova e exaltante apoteose, em que a «Portuguesa» era cantada por toda a companhia.
Por último, a 13, o Teatro Etoile, que ficava ali à Estrela, juntou também à revista Duras de roer a já indispensável apoteose à República.
Entretanto, as revistas de maior sucesso das últimas temporadas, ABC, Sol e sombra, País do vinho, eram repostas com nova desenvoltura e libertas de antigos cortes. Não aparecia, no entanto obra nova de interesse.
Mais duas revistas, estreadas em Dezembro, Roupa lavada, no Teatro Alegria, e Antes e depois, no Fantástico, pouco se aproveitaram da liberdade readquirida. E assim terminou 1910, tendo como único grande sucesso a opereta O fado, toda convencional e passada no século XIX, entre marialvas e severas.


A apimentada Júlia Mendes, que morreu logo em 1911 e deixou nome que ainda perdura.


As sindicâncias indiscretas

O ano de 1911 começou mal para a revista. A 2 de Fevereiro morreu, com apenas 26 anos, Júlia Mendes, um dos grandes nomes dessa época, famosa pela genica das suas rábulas e o sentimento dos seus fadinhos, lenda boémia que perdurou até aos nossos dias.
Finalmente, a 4 de Fevereiro, o famoso empresário e autor Luís Galhardo meteu ombros a apresentar no Avenida, a primeira revista em que se criticavam decididamente os novos tempos. Rotulada de revista política, Nem mais nem menos prometia fazer sensação.
Mas o público, sempre imprevisível, é que não gostou nada, recebendo o espectáculo, na estreia, com uma monumental pateada e atirando saquinhos de pimenta para o palco. Ao fim de 12 dias a peça, saía de cena, sem ter conseguido agradar a ninguém. Era uma linguagem nova que se tornava necessário encontrar. Entretanto, a gente dos teatros andava em grande agitação, pois, à mistura com as questões políticas, sociais e económicas, surgira mais a chamada «questão teatral», a que os jornais davam grande destaque.
É que a jovem República também se interessava em debater o Teatro, procurando dar-lhe uma nova dignidade. Por isso, uma portaria nomeara uma comissão de inquérito à arte teatral, a tão falada «sindicândia», que muitos tinham por insultuosa. Em face de tal medida, Júlio Dantas, republicano e comissário do Governo junto do agora chamado Teatro Nacional de Almeida Garrett (ex-D. Maria II) estava demissionário, assim como o inspector do Conservatório, outro dramaturgo de fama, mas este convicto monárquico: Eduardo Schwalbach.
Talvez para desafrontar Schwalbach, o público acorria a rir com uma das suas comédias mais célebres: A bisbilhoteira, reposta no República (ex-D. Amélia e futuro S. Luiz), com Adelina Abranches e Chaby Pinheiro. Quando chegou o Carnaval, foi A bisbilhoteira, como era de regra reforçada com uma pequena revista, de apenas uma hora e um quarto: Num rufo.
Servida por um elenco de nomes grandes, com os compadres feitos por Chaby, no «Homem do Bombo», e Adelina, numa recriação do seu travesti na famosa peça O Garoto de Lisboa, o êxito ultrapassou largamente o Entrudo. Só para ouvir Ângela Pinto cantar, em francês, em dueto com Alexandre de Azevedo, a «Valsa dos apaches», não havia teatreiro que lá não fosse várias vezes. A revista começou a aprender a falar.


Nascimento Fernandes no policia, Carlos Leal no compère, Lucinda do Carmo na bandeira monárquica e Delfina Vitor na bandeira republicana, no célebre número das Bandeiras de «Agulha em Palheiro», (1911).


A «agulha em palheiro»

Mas o primeiro sucesso a valer da revista em liberdade estreou-se, ainda em Fevereiro, no Apolo (ex-Príncipe Real), chamavá-se Agulha em palheiro e ficou em cena a temporada toda, fartando-se depois de ser reposta.
Os seus autores, Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e Lino Ferreira, tinham já um nome cuja fama não ia parar de crescer, a música era de Filipe Duarte e Carlos Caldéron, maestros dos bons, e os figurinos, nada mais nada menos que da autoria de José Malhoa, Alberto Sousa, Valença e Emérico Nunes. Tudo de primeira ordem. Também o elenco reunia quanto havia de melhor no género: jovem, Carlos Leal, compère por excelência durante mais de 40 anos, era o Zé Quintolas. Nascimento Fernandes, o cómico de talento fulgurante, que havia de dominar, quase sem competição, a década de 10, dividia-se entre o Galapito e o indispensável polícia 123. Lucinda do Carmo, actriz versátil, que saltava dos dramas de Ibsen para a revista apimentada, apesar de já andar pelos 50 anos, era ainda uma grande vedeta e emprestava a sua lendária mordacidade à figura da «Sindicância», essa novidade da vida portuguesa que a todos assustava e tudo devassava.
Liberta e irreverente, a revista encontrara enfim o modo de dissecar, à gargalhada, o panorama nacional e as suas novas perspectivas. Um dos quadros mais ousados era, pela certa, o que ironizava a expulsão das ordens religiosas, metendo a ridículos os padrecas, que cantavam compungidos: «Adeus belas frescatas / com freitas e beatas». Depois de tantos anos de silêncio imposto a tudo o que tivesse cheiro de sacristia, uma tal liberdade era uma festa. E havia, como era de esperar, um número às greves que rebentavam sem parar, pondo em cena «costureiras, floristas, sopeiras, telefonistas e parteiras, a reclamarem furibundas, ante a plateia deliciada, e a cantarem em coro: «Seja uma por todas e todas por uma / na greve ao patrão».


Chaby Pinheiro, o homem do bombo, e Adelina Abranches, o garoto de Lisboa, compadres de «Num Rulo».


Também as disputas em mudar ou não a bandeira nacional, assunto que mobilizara a opinião pública, mereciam um quadro que alcançou foros de escândalo. Enquanto Lucinda, na deposta bandeira azul e branca, se cobria de ricas sedas, entenderam os figurinistas que a jovem cantora Delfina Vítor, que representava a triunfante bandeira verde e encarnada, se deveria vestir de tecido popular e grosseiro. Mas a actriz é que não esteve pelos ajustes. Sentindo-se amesquinhada, rasgou o fato em pleno ensaio e gritou: «Não visto esta bodega!»
O caso constou, e tanto bastou para que se armasse uma pateada valente na estreia, sendo a actriz vaiada aos gritos de «Fora, talassa!», o que, para o tempo, seria como hoje corrê-la como fascista. Debulhada em lágrimas, a pobre Delfina mal conseguia explicar que, ao fim e ao cabo, o que ela queria era vir vestida com sedas, como as vedetas, e não havia política nenhuma no caso. Enfim! O caso pitoresco passou, Delfina agradou e a revista, uma vez encontrada a sua nova maneira de falar, foi acumulando êxitos, como Có-có-ró-có (1912), O 31 (1913), Novo mundo (1916), e tantos mais, contanto para escrevê-la com Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos (a imbatível parceria), o grande André Brun, Luís Galhardo, Lino Ferreira e uma mão-cheia de outros. E actores como Nascimento Fernandes, Estêvão Amarante, Carlos Leal, Amélia Pereira e Joaquim Costa, não paravam de somar sucessos.
A liberdade era usada para criticar tudo e todos, e não havia politico que lhe escapasse. E sempre de cabeça erguida e com gargalhada sonante, lá seguiu a revista o seu caminho.»

Vítor Pavão dos Santos
Jornal Se7e 4-10-78
Fotos copiadas do Jornal Se7e



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