Conto de
Luiz Pacheco
(In,
Expresso 09-03-1974)
Coisas
boas em jornais
Luíz Pacheco (1925-2008). Foto encontrada em puroacaso.wordpress.com |
UMAS CALÇAS
VERMELHAS, OUTRAS AMARROTADAS. Podia ser o titulo. Foi no que pensei primeiro.
Provocante à
leitura,
talvez estimulante. Rápido e objectivado, resumindo a anedota num apontamento
familiar sugestivo. E não. Por todas estas vantagens tornava-se cabotino. Enganador.
Iam outra vez pensar que era coisa erótica, pior: pornográfica. Quando o Jogo
da acção, o seu mistério (para sempre indecifrável como são as relações intimas,
que se querem intimas e decisivas, das criaturas) estava muito além. Ele sentia
aquilo não um entretenimento, um brinquedo frívolo de largar, deitar fora fácil depois de esventrado, despojado da sua
pele aparente. Mas uma, uma preocupação obcecante. Repito: naqueles dias, coisa
grave e decisiva para Ele.
Acordando
pela manhã, a luz vagarosa espreitou pelas persianas descosidas e pelo largo
palmo aberto a que tinham ficado levantadas. No quarto, sobre a mesa onde havia
papelada ao desbarato e livros, a luz afirmou-se num súbito espanto (aquele
bairro era tão pacato) que a tornou mais viva, e mais e mais atenta e viu um
par de calças vermelhas boca-de-sino, talvez de mulher, sobre umas calças
amarrotadas, cinzentas ou
pretas,
amontoadas. Uma cadeira. Um divã à esquerda onde não havia colchão de palha ou
espuma mas algumas mantas fazendo um pouco de fofo na rede entrançada muito
flexível (por
lassa) do arame. Adiante, um armário (antigo guarda-vestidos?) sem porta, mais livros
numa estante verde desbotada, o tudo em desordem de armazém vasculhado às
pressas, quarto que não deve ter serventia imediata prática na casa, um desvio
de arrumação. Dentro do armário aberto muitas maças que cheiravam e davam ao
silêncio
do quarto um
recolhimento vivaz, uma libertação de ares perfumados, campestres-cabana ao abandono
numa distanciada colina solitária, gruta ou tugúrio de namorados furtivos.
Old School Theater, organist experience at Grand Lake Theater, Oakland, CA, USA. Foto encontrada em www.pingram.me. |
Podia
ser um bom titulo. Mas não iriam implicar por causa da cor (o vermelho)? Fácil
de substituir: calças em xadrez castanho escuro e tijolo e preto, as mesmas que
a Mizé usava nas suas operações de "charme" para cravanço em aflição de
massas. Mas o titulo assim fica longo. Outro: ACORDANDO PELA MANHA. Mas estava
tudo ainda a dormir em casa. E a gentinha do bairro não entra aqui. E se não
resolvo o problema do título, como é que isto avança?
A
luz, agora espertinada. Rodeou a esquina do prédio e não espectadores, puxando
os olhos para a frente, não ligando à música Nesse quarto, um casal nu dormia em
larga cama de madeira rangente e sem mais mobília que uma outra cama, de
criança. Com guardas altas. Dormia o bébé? seria um bébé? dá-se-lha a Idade que
se quiser em ficção é assim, ou sugere-se a conveniente à
intriga pelo menos começa barregar suspiros, balbuciar entaramelados
sons. Remexia-se às voltas. Sinais talvez da fome de papas flocos de aveia ou
fosfatine rápido sem necessidade de
cozedura. O casal nu entre lençóis azulados saberemos se bordados logo que
haja claridade uma carne branca lânguida abraçada quase enrolada num vulto
moreno pelagem de macaco a ressonar ainda não distinguimos os corpos os
sexos.
De
certeza, isto: o pianista careca que tocava entre a plateia e o écran nessa
altura olhava sempre para cima, fazia aquilo sempre; durante o genérico
preludiara uma miscelânea de cançonetas em voga mas às primeiras imagens, na
sequência das calças atiradas sobre a mesa, atacara as teclas num fortíssimo como
a chamar decerto que sim, é o que me convém, também a atenção da
assistência para o pormenor logo em grande plano das calças vermelhas a fita
era a cores ou não era? terei que decidir a tempo, é importante; agora
nesta cena, sabendo a rapariga nua na cama dedilhou uns gorjeados sentimentalismos
de opereta, tremendo por dentro a lembrar-se de uma mulher que outrora. A sua desapercebida,
talvez desnecessária intervenção na sala, o comentário sonoro repisado
enfastiado pela rotina adquiria emotividade. Os espectadores, puxando os olhos para
a frente, não ligando à música pois ninguém acho eu iria ali ouvir melodias
fora de uso, estropiadas (o piano vertical era um cangalho, com o cepo
rachado), mas ver casos reais e como? um drama passional, previam. A
rapariga nua, só imaginada por ora mas já lhes conhecida e cobiçada dos
cartazes aos lados da bilheteira, era um atractivo de mestre.
Vamos
complicar isto e depressa, até aqui não se percebe nada. A vidinha das pessoas é
uma trama difícil de reproduzir, mesmo para gente sensível (subtil) e atenta (interessada)
quase impossível de explicar. Tentamos dar vida por escrito a alguém que
apaixonadamente nos preocupa. Vamos recriando uma a uma as suas facetas, diversas
e até contraditórias, e acabamos por ficar numa expectativa inquieta, às vezes inútil pois nos
remete e quase limita à visão inicial do primeiro encontro. As
pessoas mudam tão depressa e nós com elas, longe perto, na conivência (cumplicidade)
do dia-a-dia em comum ou no silêncio da separação; as nossas sucessivas versões
delas, tão mutáveis connosco, com (também) os nossos próprios íntimos ímpetos
de alegria ou desespero, raiva ou esperança, etc.; um retrato instável, difuso jogo
de sombras rápidas, num claro-escuro que nos entontece imagens atrás de imagens
e nenhuma a definitiva. Amaríamos de olhos vendados, previlégio da juventude;
fazemos um teimoso esforço para conhecer e reconhecermo-nos noutrem, caprichos
da idade adulta. Longe ainda dos juízos assisados dos velhos que supõem nunca
se enganar (poderem ser enganados) que rabugem odienta, que malevolência
impotente e cómica afinal revelam, quanta desfaçatez e cinismo
sai das suas bocas engelhadas, fulgura em olhares que o rancor (a inveja? ainda
um remoto desejo?) atiça. Como ao pianista careca. Ou no que Ele teme tornar-se
daqui a uns tempos.
O
dia anda. Façamos mais luz, como pedia o Goethe nas vascas. Entrámos num outro
quarto da casa. Um tipo ainda de olhos fechados estende a mão rogando hesitante
e agarra o gargalo duma garrafa de água que está no chão acena ao lado da cama.
Bebe sôfrego. Demorados goles. Tronou a pousar a garrafa, limpou os beiços com
as costas das mãos, ou à dobra do lençol, talvez numa manta felpuda. Aspira com
prazer o ar fresco que pela janela aberta corre o quarto todo, tenta perceber
que horas serão. Conhece os ruídos da rotina do bairro: a salteado a correr às tantas
da cobradora das carreiras de autocarros que mora defronte, é bonita mas a
farda obriga-a a usar uma espécie de chapéu de coco esverdinhado de abas
reviradas e pala curta. dá vontade de rir não há beleza que resista. E um
vizinho que desconhece e tem uma carripana utilitária primeiro que pegue é uma
chatice. Esse sai sempre às tantas. Oito e um quarto: pelas ruas do bairro a
apitadela insistente repenicada da carrinha do infantário externato do Monte
Abraão nenhuma alegoria bíblica: é como se chama o monte e tem lá uma anta. São
horas. Num arremesso decidido atira as roupas da cama, bebe mais um gole
grande, procura a tactear os óculos debaixo da cama. Quer recordar o que
aconteceu na véspera e como está ali.
Ele vai falar sózinho ou estará a pensar? não o podemos saber. Talvez fazendo-lhe um buraquinho no alto da cabeça e ouvir. Utilizar o monólogo interior? uma voz off? manigâncias de estilo, convencionais como o resto, facílimas de o impingir à malta.
Ele vai falar sózinho ou estará a pensar? não o podemos saber. Talvez fazendo-lhe um buraquinho no alto da cabeça e ouvir. Utilizar o monólogo interior? uma voz off? manigâncias de estilo, convencionais como o resto, facílimas de o impingir à malta.
O
pianista careca embirra solenemente com o tipo que está a fumar. Acha que o
tipo é estúpido, um anjolas que não percebe nada de nada. Julga-se muito mais esperto
talvez porque é muito mais velho, tontarias de caruncho. Desafina de propósito,
a querer dar a personagem antipática, mas cada qual é como é, sem música ou
com. E a verdade é que os senhores
espectadores que pagaram cinco escudos (preço único, sessões contínuas
gostariam era de ver o que se passa no quarto às escuras onde está o casal nú.
Não precipitemos. Não se pode dizer tudo ao mesmo tempo, a montagem dos vários
episódios exige uma técnica rigorosa. Consumada. O pianista fará vibrar uma
ária lírica que anuncie e acompanhe a aparição (está para breve) da rapariga,
coberta por um roupão cor de vinho ou violeta, um manto de quaresma ambíguo.
malicioso quando se entreabria.
Robert Bruce acompanhando um clássico de Buster Keaton. Foto de robertbrucemusic.com |
A
rapariga sai do quarto, a meio do corredor abriu a porta da casa de banho.
Iluminada pelos projectores mais potentes do estúdio deixou cair o roupão aos
pés para que VV, todos possam vê-la melhor
à vontade. Por instantes apenas que depois a rapariga com uma risada de
adolescente (ou vedeta, cortesã sabida?) vai dar um pulinho e enrolar as ancas
numa toalha que deixa ver, podemos, demorar-nos a ver o umbigo, a cintura e em
baixo, joelhos e pernas esguias. tão altas como eu gosto, os tornozelos, pés
bailando nus mas chinelas de plástico baratas. Plano americano: vemos agora
nus: ombros, braços, seios. Axilas sem uma penugem, que ela mostra espreguiçando-se.
Sobre a coluna desenvolta do pescoço, no rosto amarelado de fadiga e sono riem para
nós os olhos e a boca, rnarcada com dois vincos curvos mas são rugas quase
cicatrizes que sobem dos
cantos do lábio superior às narinas, isolam um sorriso numa amargura súbita,
que não entendemos. Um seio pequenino que se mete todo inteiro na nossa boca apetece comer ou
chupar como um sorvete morno. Ao lado há outro, um invejoso que pede também. Beijos
e carícias estudadas. E a servidão de um corpo que se descontrola. Desvaira.
Podemos deslizar a mão pela polida suada testa, percorrer os cabelos soltos com
os nossos dedos abertos, amansar ou talvez prolongar aquela ânsia fremente que lhe
percebemos, descer e admirar a gracinha do umbigo. Corta.
Pianista toca música para elefantes cegos na Tailandia. Foto de 2011 encontrada em colunas.globorural.globo.com |
Quem
mais está a sofrer na sala é o pianista careca. Enquanto os outros pateiam e
assobios silvam desiludidos, irritados, coitado do velho agita-se no banquinho
e olha na direcção do bar com uma sede de bagaços danada. Na mente taralhouca
misturam-se as memórias de corpos que conheceu e viu de perto outrora. Mulheres
de carne e osso, não uma fugidia aparição estampada numa parede a onde ninguêm
pode chegar e ele está farto de ver há semanas. O que o perturba não é isso. Os
outros talvez encontrem mulheres à saída, vão com elas, risonhos. Mas o velho
artista frustrado (aquele emprego é o fim), já não tem nada, nada, nenhuma
ilusão a que se agarrar.
Ele
agora lembra-se. Jantarada em Lisboa. O marido despedia-se como de costume com
um pretexto qualquer. Regresso a casa de táxi com a Mizé. As crianças devia
estar a dormir. Em imagens rápidas, mas muito nítidas, dessa noite tumultuosa
surgiam-lhe dois olhos a fixarem-no, alargados, entre o espanto e o desejo.
Talvez, outro truque. Como sabê-lo ao certo? Onde começava acabava a
cumplicidade deles, que jogo era aquele? Quem era vitima de quem? talvez não
passassem de sombras, num bailado ensaiado e dançado a rigor, ou tudo é
improviso do acaso. Qual fazia batota se iludia ainda? Faltava-lhe perspicácia
ou coragem para decidir, deslindar a meada em que se sentia outra vez envolvido.
Sabia-se constrangido por
"Lá
está aquele mais as suas paixonetas assolapadas!", e o pianista soltou uma
grande gargalhada. Felizmente para ele (ou seria despedido) ninguêm ouviu com o
barulho das cadeiras a levantar-se na plateia. Era o intervalo.
E
pronto. Utilizei o receituário quase todo, uma data de efeitos já confeccionados.
Deliberadamente Kitsch. Assim. No entanto, no entanto porque palpito, me
assusta ainda um pouco? que iremos ver
a seguir.
ANIMATÓGRAFO Conto de Luís Pacheco
publicado no jornal Expresso
de 09-03-1974.
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