Luis Fernando Verissimo |
Batman não acredita que Drácula tenha mais de 500 anos. Não lhe daria mais de 200.
- Tempo de mais - diz Drácula. - Estou na terceira idade do Homem. Depois da mocidade e da maturidade, a indignidade...
O cúmulo da indignidade, para o conde, é a dentadura falsa. Ele não pode ver a sua própria dentadura sobre a mesinha-de-cabeceira sem meditar sobre a crueldade do tempo. Já tentou o suicídio, sem sucesso. Estirou-se numa praia do Caribe ao meio-dia para que o Sol o reduzisse a nada. Só conseguiu uma boa queimadura. Dedicou-se a uma dieta exclusiva de alho. Só conseguiu que as mulheres o expulsassem da cama. A estaca no coração também não funcionara. Precisava ser de um determinado tipo de madeira benta, usada numa determinada fase da Lua, a logística do empreendimento o derrotara. E ninguém se dispõe amatá-lo, agora que os seus caninos são postiços e ele não é mais uma ameaça. Drácula está condenado à vida eterna, à velhice sem redenção e à indignidade sem fim. Internou-se na clínica com a vaga esperança de que a Morte, que vem ali buscar tanta gente, um dia o leve por distracção.
- E você, Batman?
Batman conta que está na clínica para retardar a Morte. Não confessa a sua idade, mas recusa-se a tirar a máscara para que não vejam as suas rugas. Ele não é um super-herói com superpoderes, inclusive o de não morrer, como o Super-Homem.
- Eu sou dos que morrem - diz Batman, com um suspiro.
No tom da sua voz está a lamúria milenar da espécie dos que morrem. Drácula parece não ouvi-lo. Está interessado em outra coisa.
- Você vai terminar esse iogurte? - pergunta.
Mas Batman continua a sua queixa:
- Eu já não voava. Hoje quase não caminho. Não posso mais dirigir o Batmóvel, não renovaram a minha carteira...
- Eu já não voava. Hoje quase não caminho. Não posso mais dirigir o Batmóvel, não renovaram a minha carteira...
Mas ele não quer a redenção da Morte. Quer a vida eterna, a mesma vida eterna de um homem de aço.
- Vamos fazer um trato - sugere Drácula. - Quando a Morte vier buscá-lo, trocaremos de lugar. Você veste este meu robe de cetim e a echarpe de seda, eu visto essa sua fantasia ridícula e a...
Batman o interrompe com um gesto: - A Morte não pode ser enganada.
- Claro que pode - diz Drácula. - É só você passar um pouco da minha pomada no seu cabelo que a Morte o tomará por mim e...
- Que cabelo? - pergunta Batman, com outro suspiro, também antigo.
- Não somos muito diferentes - diz Drácula.
-Somos completamente diferentes - rebate Batman. - Eu sou o Bem, você é o Mal. Eu salvava as pessoas, você chupava o seu sangue e as transformava em vampiros como você. Somos opostos.
-No entanto - volta Drácula com um sorriso, mostrando os caninos de fantasia - , somos os dois homens-morcegos.
Batman come o resto do seu iogurte sob o olhar cobiçoso do conde. Diz: - A diferença é que eu escolhi o morcego como modelo. Foi uma decisão artística, estética, autónoma.
- E estranha - diz Drácula. - Porquê o morcego? Eu tenho a desculpa de que não foi uma escolha, foi uma danação genética. Mas você? Porquê o morcego e não, por exemplo, o cordeiro, símbolo do Bem? Talvez o que motivasse você fosse uma compulsão igual à minha, disfarçada. Durante todo o tempo em que combatia o Mal e fazia o Bem, o seu desejo secreto era de chupar pescoços. A sua sede não era de justiça, era de sangue. Desconfie dos paladinos, eles também querem sangue.
- Se eu ainda pudesse fazer um punho, você ia ver qual é a minha compulsão neste momento - rosna Batman.
Mas Drácula não perde a calma:
- E veja a ironia, Batman. O morcego bom passa, o morcego mau fica. Um não quer morrer e morre, o outro quer morrer e não morre. Ou talvez não seja uma ironia, seja uma metáfora para o mundo. O Bem acaba sem recompensa, e o único castigo do Mal é nunca acabar.
- E veja a ironia, Batman. O morcego bom passa, o morcego mau fica. Um não quer morrer e morre, o outro quer morrer e não morre. Ou talvez não seja uma ironia, seja uma metáfora para o mundo. O Bem acaba sem recompensa, e o único castigo do Mal é nunca acabar.
Drácula continua:
- Somos dois aristocratas, Batman, um feudal e outro urbano, um da Velha Europa e outro da Nova América. Eu era Vlad, o Impalador, na Transilvânia, você o herdeiro de uma imensa fortuna em Gotham. Eu era o terror dos aldeãos, você um rico caridoso. Os pobres nunca ameaçaram invadir a sua mansão com archotes, mas somos, os dois, da mesma classe, a dos sanguessugas. O que nos diferencia é que eu não tinha remorsos.
Batman pede que Drácula se retire. Dali a pouco chegará Robin com os netos e ele não quer que as crianças se assustem.
Luís Fernando Veríssimo, crónica publicada no jornal expresso em 20 junho 2009
Fotos da net
Sem comentários:
Enviar um comentário