Outras Loiças

domingo, 15 de abril de 2012

"De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu"


JORGE SOUSA BRAGA


Jorge Sousa Braga
Poeta e médico português, Jorge de Sousa Braga nasceu a 23 de dezembro de 1957, em Cervães, no concelho de Vila Verde. Após ter completado os estudos básicos e liceais em Viana do Castelo e em Braga, ingressou na faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Concluiu o curso em 1981, tendo-se especializado em Obstetrícia/Ginecologia, e iniciou a sua carreira profissional no Hospital de Santo António, no Porto. Já casado e pai de dois filhos, dedicou-se posteriormente ao estudo e à consulta de casos de esterilidade/infertilidade. Desde muito cedo sentiu-se impelido para a poesia - tinha apenas oito anos quando escreveu o seu primeiro poema, uma espécie de homenagem ao então futebolista Eusébio, um dos seus ídolos de infância e representante, na altura, do Sport Lisboa e Benfica, clube de que sempre foi adepto. Seria, no entanto, a partir dos 14 anos que o autor começaria a escrever consciente de que a poesia começara já a fazer parte, de forma intrínseca, da sua vida. Jorge de Sousa Braga pertence à geração dos poetas da pós-revolução, revelando uma habilidade inata na construção poética, que, embora fecunda em cadências vivas, não se submete à rigidez de um esquema métrico. Na sua escrita destacam-se expressões simples e quotidianas, revestidas de um profundo sentimento de ternura - por vezes também de desalento -, combinadas com notas de acentuada ironia ou de intensa sensualidade/intimidade. É notória, em toda a sua produção literária, uma instintiva aproximação aos elementos da Natureza. Leitor impulsivo de poesia, o seu trabalho como autor manifesta-se também nas várias traduções que tem feito, assim como nas antologias de que é responsável, considerando-as como o resultado de um apaixonante exercício de transmutação. (In, infopedia.pt)



PORTUGAL

Portugal
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir
como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo mentira que o Infante
D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns eletrochoques e está a recuperar
aparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiros dos Jerónimos a ver se contraía a febre do Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar uma pétala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
como me pude eu apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada de ressentimentos
O meu irmão esteve na guerra tenho amigos que emigraram nada de ressentimentos
Um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado na piscina municipal de Braga
ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional
Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho que Camões lá deixou
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

Jorge Sousa Braga, do livro "De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu".



EPISTOLA SOBRE A MERDA

As retretes transformadas em santuários:
eis a minha obsessão

A merda é uma boa causa
Demasiado boa
para que alguém lute por ela

Só é poeta aquele que
é capaz de comer as próprias fezes
               
A merda é a única coisa
que não se pode conspurcar


Jorge Sousa Braga
Poema extraído da revista POESIA SEMPRE, Num. 26, Ano 14, 2007. Edição da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
(In, www.antoniomiranda.com.br)



AS ÁRVORES E OS LIVROS

As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.
E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.

As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».

É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.

Jorge Sousa Braga, Herbário, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999 






CARTA DE AMOR (1981)

A Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade
Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de
costume)
a medir o tesão das flores
ali no Jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e ...
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de
eternidade
Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração

Jorge Sousa Braga


Pode um poema significar exactamente o contrário do que diz? É possível, a uma “Carta de Amor”, se iniciar com versos como: “Um dia destes/ vou-te matar”?
Fazendo uso da expectativa gerada pela dedicatória e pelo título, Jorge Sousa Braga surpreende o leitor incauto com o efeito de intimidação que percorre o poema que dedica a Eugénio de Andrade, numa das mais afectuosas homenagens poéticas escritas em vida por um poeta a outro poeta.
O tom geral do texto é o de uma ameaça assumida, de uma sentença a aplicar indiscriminadamente numa “manhã qualquer”, assumidamente com um “tiro de pistola”. Mas se o ditame é a morte, o crime parece ser a poesia – ela mesmo, – esse ofício maldito que perde vidas para o ócio, essa “não-profissão” (o ser-se, simplesmente, poeta), mister que consiste em ficar “(como de/ costume)/ a medir o tesão das flores” num jardim perto de casa.
Neste belíssimo poema de Jorge Sousa Braga, o narrador veste-se do que poderia ser uma desconfiança generalizada acerca da utilidade da poesia, da escassa importância dos poetas (mesmo os “celestiais”), qualquer deles impotente para acudir a Eugénio. Mas porque está ciente da fragilidade da acusação, o narrador propõe-se agir rapidamente, de forma implacável, não dando sequer à vítima (Eugénio de Andrade, a poesia), possibilidade de se defender. É a, tantas vezes anunciada, morte próxima da poesia.
A verdade é que, porém, mais do que (o que se poderia tomar como) uma indiferença “populi” ante a poesia (no confronto com a prosa?), àquela intimação parece sobrar uma oculta invídia pelos dias de Eugénio, resistentemente preenchidos pelo trabalho poético, a tempo inteiro se deleitando com a sapiência de “Safo Cavafy ou S. João da Cruz”, movendo-se numa apetecida geografia biográfica, por entre “mares de Setembro e dunas de Fão”. Subjacente a esse ciúme (ou quase declarada cobiça), lê-se, pela mão de Braga, um incontornável respeito e admiração pelo mestre, seu bom amigo aliás, quer pelo valor da sua obra de que é confesso leitor, quer pelo curso de uma vida inteiramente dedicada à poesia.
Por isso mesmo quando Braga tenta habilmente parecer duro e violento na linguagem (“tesão das flores”, “vou-te matar”), é do fundo de uma enorme doçura que a sua voz estala, seleccionando a mais bela das formas (“uma certeira bala de pólen”), como arma do crime e escolhendo para alvo a caixa dos sentimentos, a casa mais frágil de todas, “mesmo sobre o coração”.
A grande poesia é, afinal, a mais pequena. Matar a figura do pai, matando a obra do mestre? Ameaçar a poesia para assim a sublimar? Quando o autor se propõe comprometer a ”eternidade” do poeta, mais não faz do que oferecer-lhe, de vez, a imortalidade. E o que encerra uma dedicatória senão a voz da vida eterna? Haverá maior prova de amor do que essa?
(In, poesiailimitada.blogspot.pt)





(Fotos encontradas na net)







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